quarta-feira, 3 de agosto de 2022

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO O RETRATO DE DORIAN GRAY

 Leia o texto e responda o que se pede:


O RETRATO DE DORIAN GRAY 

OSCAR WILDE 

CAPÍTULO 1 

Perfumava o atelier um delicioso aroma de rosas e, quando a leve brisa estival sacudia as árvores do jardim, sentia-se através da porta aberta a fragrância pesada do lilás ou o perfume mais delicado do espinheiro de flor cor-de-rosa. 

Do canto do divã persa em que estava estendido, fumando, como tinha por hábito, cigarro atrás de cigarro, Lord Henry Wotton o mais que podia abranger com os olhos era um codesso de flores cor de mel, cujos ramos trémulos pareciam mal poder com o peso de uma beleza tão etérea e subtil; e, de quando em quando, as fantásticas sombras de aves voando cruzavam as cortinas de seda que guarneciam a enorme janela, produzindo como que um momentâneo efeito japonês e fazendo-o pensar nesses pálidos pintores de Tóquio que, por meio de uma arte que é necessariamente imóvel, procuram dar a sensação da ligeireza e do movimento. 

O monótono murmúrio das abelhas, zumbindo entre a relva por aparar ou voando com uma fastidiosa insistência em redor dos espinhos empoeirados de ouro da madressilva, parecia tornar ainda mais opressivo o silêncio. O vago bulício de Londres chegava-lhe aos ouvidos como o bordão de um órgão longínquo. 

No centro da sala, sobre um cavalete, exibia-se o retrato de corpo inteiro de um jovem de extraordinária beleza e, em frente, a curta distância, achava-se sentado o artista que o pintara, Basil Hallward, cujo brusco desaparecimento alguns anos antes havia causado certo alvoroço e originado as mais estranhas conjeturas.

Ao fitar a sua obra, em que com tanta arte retratara linhas tão graciosas e gentis, o pintor não pôde deixar de sorrir. 

Dir-se-ia que esse sorriso prazenteiro se lhe iria demorar nos lábios, mas, de repente, o artista levantou-se e, cerrando os olhos, colocou os dedos sobre as pálpebras, como se procurasse prender dentro do cérebro algum curioso sonho de que receava despertar. 

— É o seu melhor trabalho, Basil, a melhor coisa que fez – disse Lord Henry, languidamente. 

– Com certeza vai mandá-lo no ano que vem à exposição de Grosvenor. A Academia é grande de mais e vulgar de mais. De todas as vezes que lá fui, ou havia tanta gente que eu não podia ver os quadros, o que era terrível, ou havia tantos quadros que eu não podia ver as pessoas, o que era pior. Grosvenor é, na realidade, o único lugar. 

— Não penso mandá-lo a parte alguma  – respondeu o artista, atirando para trás a cabeça, naquele seu jeito singular que, em Oxford, provocava o riso dos amigos.

 –  Não! Não tenciono expô-lo! Lord Henry arregalou os olhos e fitou-o com espanto, através das espirais azuis de fumo que caprichosamente se evolavam do seu cigarro fortemente opiado. 

— Não tenciona expô-lo? Porquê, meu caro amigo? Tem alguma razão? Que esquisitos vocês são, os pintores! Fazem tudo para criarem fama. Mal a têm, parecem apostados em atirá-la fora. É uma tolice, pois só há no mundo uma coisa pior que falarem de nós: é ninguém falar de nós. Um retrato como este colocá-lo-ia muito acima de todos os jovens de Inglaterra e causaria inveja a todos os velhos, se é que os velhos são capazes de qualquer emoção.  

— Bem sei que se há de rir de mim – replicou ele –, mas o facto é que não o posso expor. Pus nele muito de mim mesmo. Lord Henry estirou-se no divã e desatou a rir. — Sim, já sabia que se iria rir; mas é, no entanto, absolutamente certo. 

— Demasiado de (muito de) si mesmo! Palavra de honra, Basil, não o sabia tão vaidoso; e, na verdade, nenhuma semelhança posso ver entre si, com a cara forte e enrugada e o cabelo preto como carvão, e este jovem Adónis, que parece feito de marfim e pétalas de rosa.

Ele é, meu caro Basil, um Narciso, e você… bem, é claro que tem uma expressão intelectual. Mas a beleza, a verdadeira beleza, termina onde começa a expressão intelectual e tudo isso.

A inteligência é, em si, um modo de exagero e destrói a harmonia do rosto. Quando uma pessoa se senta para pensar, torna-se toda nariz, ou toda testa, ou alguma coisa horrenda. Veja os homens a quem o êxito sorriu em qualquer das profissões intelectuais. 

Que hediondos são! Excetuam-se, já se vê, os da Igreja. Mas é que na Igreja não se pensa. Um bispo continua a dizer aos oitenta anos o que lhe ensinaram aos dezoito; e, como consequência natural, ele conserva sempre uma aparência absolutamente deliciosa. 

O seu misterioso amigo, cujo nome nunca me disse, mas cujo retrato realmente me fascina, nunca pensa. Tenho disso a certeza absoluta. 

É algum indivíduo belo, destituído de cérebro, que devia estar sempre aqui no inverno, quando não temos flores que nos encantem a vista, e no verão, quando precisamos de alguma coisa que nos refrigere a inteligência. 

Não se lisonjeie, Basil: você não se parece nada com ele. — Não me compreende, Harry – respondeu o artista. – É claro que não me pareço com ele. 

Sei-o perfeitamente. Digo-lhe ainda mais: penalizar-me-ia muito parecer-me com ele. Encolhe os ombros? Estou a dizer-lhe a verdade. 

Há uma fatalidade em toda a  distinção física e intelectual, aquela espécie de fatalidade que parece seguir, através da História, os passos vacilantes dos reis. 

 O melhor é não nos distinguirmos dos outros. Os feios e os estúpidos são neste mundo os mais ditosos. 

Podem à sua vontade gozar o espetáculo. Se não conhecem as delícias do triunfo, também os não amargura o travo da derrota. Vivem como todos nós devíamos viver, sossegados, indiferentes, sem inquietações. 

Nem causam a ruína dos outros, nem a recebem de mãos alheias. A sua situação é a sua riqueza, Harry; o meu cérebro, seja ele o que for; a minha arte, valha ela o que valer; a beleza de Dorian Gray… havemos todos de sofrer por aquilo que os deuses nos deram, e sofrer terrivelmente.

 — Dorian Gray? É assim que ele se chama? – perguntou Lord Henry, atravessando o atelier na direção de Basil Hallward. 

— É. Não lho queria dizer. 

— Mas porquê? 

— Oh, não posso explicar. Eu nunca revelo os nomes das pessoas de quem gosto muito. É como entregar uma parte delas. Amo o segredo. 

Parece-me ser a única coisa que nos pode tornar a vida moderna misteriosa ou maravilhosa. Só ao ocultá-la tornamos deliciosa a coisa mais banal. Quando me ausento da cidade, nunca digo para onde vou. Se o dissesse, lá se me ia todo o prazer. 

Será uma tolice, será; mas é um hábito que me parece introduzir na nossa vida o seu quê de romance. Acha, decerto, disparatado o que lhe estou a dizer. 

— Nada disso – retorquiu Lord Henry –, nada disso, meu caro Basil. 

Parece-me que você se esquece de que sou casado, e o único encanto do casamento é tornar absolutamente necessária uma vida de engano mútuo. 

Eu nunca sei onde está a minha mulher, ela nunca sabe o que eu faço. Quando nos encontramos (uma vez ou outra, quando vamos jantar fora, ou quando vamos a casa do duque), contamos um ao outro as histórias mais sérias do mundo. A minha mulher tem muito jeito para isso: muito mais, confesso.

Disponível em: < recurso (portoeditora.pt) > Acesso em 03 de ago de 2022.


1. Qual é o outro sentido da palavra "lilás" no primeiro parágrafo do texto?

2. Qual foi o elemento que Lord Henry foi levado a pensar nos pintores de Tóquio? Justifique.

3. Qual é o local/lugar em que se passa a cena retratada?

4. Qual é a discordância entre o pintor Basil e Lord Henry acerca do quadro?

5. O comportamento dos pintores é criticado por Lord Worton. Qual é essa crítica?

6. Basil justifica que não quer expor o quadro, porém Worton utiliza da ironia com ele. Por que isso acontece?

7. O uso do raciocínio é muito importante na argumentação. Qual é o tipo de raciocínio usado por Basil para ter como justificativa não querer ser como o jovem da tela retratada?

8. Ao ler o texto, podemos inferir (acrescentar informações que não contradizem o texto) se Worton acha Basil feio ou bonito? Justifique.

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