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Discovery
A nave estava ainda a trinta
dias da Terra, mas, às vezes, David Bowman achava difícil acreditar que
conhecera outra existência para além do pequeno mundo fechado da Discovery.
Todos os seus anos de treino, todas as suas anteriores missões à Lua e a Marte,
pareciam pertencer a outro homem, noutra vida. Frank Poole reconhecia ter as
mesmas sensações, e chegara a lamentar, com um ar brincalhão, que o psiquiatra
mais próximo se encontrasse a cento e cinquenta milhões de quilômetros de
distância. Mas tal sensação de isolamento e afastamento era fácil de
compreender, e claro que não indicava qualquer anormalidade. Nos cinquenta anos
seguintes à primeira aventura do homem no espaço, nunca houvera uma missão como
aquela. Começara, cinco anos antes, como Projeto Júpiter – a primeira viagem
tripulada à volta do maior dos planetas. A nave encontrava-se quase pronta para
a sua viagem de dois anos quando, algo abruptamente, o perfil da missão fora
alterado. A Discovery iria na mesma a Júpiter; mas não pararia. Nem sequer
abrandaria a sua velocidade quando passasse pelo distante sistema de satélites
joviano. Pelo contrário – usaria o campo gravitacional do mundo gigante como
estilingue que a projetasse para sítios ainda mais distantes do Sol. Tal como
um cometa, riscaria o espaço das fronteiras mais afastadas do sistema solar, em
direção ao seu objectivo fundamental: a glória dos anéis de Saturno. E nunca
regressaria. Para a Discovery, seria uma viagem só de ida – todavia, a sua
tripulação não tinha quaisquer intenções de se suicidar. Se tudo corresse bem,
estariam de volta à Terra dali a sete anos – cinco dos quais se passariam num
abrir e fechar de olhos, no sono sem sonhos da hibernação, aguardando o
salvamento que seria levado a cabo pela ainda por construir Discovery II.
[...]
Como todas as viagens ao
desconhecido, era um risco calculado. Mas meio século de pesquisas haviam
provado que a hibernação humana, artificialmente induzida, era perfeitamente
segura, o que trouxera novas possibilidades às viagens espaciais. No entanto,
até àquela missão, elas não haviam sido exploradas ao máximo. Os três membros
da equipa de estudos, que só seriam precisos quando a nave entrasse na sua
órbita final em volta de Saturno, dormiriam durante toda a viagem até lá.
Toneladas de comida e de outros produtos de consumo seriam assim economizadas;
e, quase tão importante, quando entrasse em ação, a equipa estaria fresca e
alerta, e não fatigada por uma viagem de dez meses.
A Discovery entraria então numa
órbita de estacionamento à volta de Saturno, tornando-se mais uma lua do
planeta gigante. Aí, balançaria para trás e para diante ao longo de uma eclipse
de três milhões de quilômetros, que a levaria para perto de Saturno, e depois
através das órbitas de todas as suas luas principais. Disporiam de cem dias
para traçar mapas e estudar um mundo com uma área oitenta vezes superior à da Terra,
rodeado por um séquito de pelo menos quinze satélites conhecidos – um dos quais
do tamanho do planeta Mercúrio.
[...]
Ao fim dos cem dias, a
Discovery fechar-se-ia. Toda a tripulação entraria em hibernação; vigiados pelo
incansável cérebro eletrônico da nave, apenas os sistemas essenciais
continuariam a funcionar. A nave seguiria então a sua órbita em volta de
Saturno, tomando um rumo tão bem determinado, que qualquer homem saberia onde a
procurar num período de mil anos. Mas, segundo os planos, dali a apenas cinco
anos a Discovery II chegaria até ela. E mesmo que se passassem seis ou sete ou
oito anos, os seus passageiros adormecidos nunca dariam pela demora. Para todos
eles o relógio pararia, como já parara para Whitehead, Kaminski e Hunter. Às
vezes, Bowman, como Primeiro Comandante da Discovery, invejava os seus três
colegas, inconscientes na paz gelada dos hibernáculos. Estavam livres do
aborrecimento e de toda a responsabilidade; até atingirem Saturno. O mundo
exterior não existia para eles.
Mas mais fascinante que tudo
eram os EEGs – as assinaturas eletrônicas de três personalidades que haviam,
um dia, existido, e que voltariam a renascer. Estes praticamente não tinham os
picos e depressões, as explosões eléctricas, que marcam a atividade do cérebro
acordado – nem sequer a do cérebro num sono normal. Se neles permanecera algum
pedaço de consciência, este encontrava-se para lá do alcance dos instrumentos, e
da memória. Bowman conhecia este último facto por experiência pessoal. Antes de
ser escolhido para aquela missão, as suas reações à hibernação haviam sido
testadas. E ainda não tinha a certeza se perdera uma semana de vida, ou se
adiara a morte por igual período de tempo.
Embora houvesse regressado são
e salvo das fronteiras mais longínquas do sono, e dos confins mais próximos da
morte, passara apenas uma semana. Quando saísse do hibernáculo, não veria o
frio céu de Saturno – que ficava a mais de um ano no futuro, e a um bilião e
meio de quilômetros de distância. Encontrava-se ainda no simulador, no Centro
de Voo Espacial de Houston, sob o sol quente do Texas.
16
HAL
Mas agora o
Texas estava invisível, e nem os Estados Unidos se descortinavam facilmente.
Embora o motor a plasma de baixo impulso tivesse sido desligado havia muito
tempo, a Discovery seguia ainda ao longo da costa, com o seu corpo delgado e em
forma de seta apontando para fora da Terra; toda a sua aparelhagem óptica,
altamente potente, se orientava para os planetas exteriores, onde ficava o seu
destino.
Pelo menos uma vez em cada
período de vigia, Bowman olhava para casa através do telescópio de alinhamento
da antena. Como a Terra se encontrava muito para trás, na direção do Sol,
virava o seu hemisfério escurecido para a Discovery, e, no visor central, o
planeta adquiria a forma de um ofuscante crescente prateado, como outro Vénus.
Raramente podiam ser identificados alguns traçados geográficos naquele arco de
luz que cada vez encolhia mais, pois as nuvens e a neblina escondiam-nos, mas
até a porção escurecida do disco se lhe afigurava incessantemente fascinante.
Salpicavam-na cidades brilhantes, que, ora ardiam com uma luz sempre igual, ora
cintilavam como pirilampos, quando perpassadas por vibrações atmosféricas.
Havia também períodos em que a Lua, no movimento normal de vaivém da sua
órbita, iluminava os mares e continentes escurecidos da Terra como um grande
candeeiro. Nessas alturas, emocionado pelo reconhecimento, Bowman descortinava
frequentemente litorais familiares, que brilhavam àquela espectral luz lunar.
E, às vezes, quando o Pacífico estava calmo, chegava até a ver o reflexo da lua
cintilando na sua superfície; e recordava noites passadas debaixo de palmeiras
de lagunas tropicais. No entanto, não lamentava estas belezas perdidas.
Gozara-as todas, durante os seus trinta e cinco anos de vida; e estava
determinado a desfrutar novamente delas, quando regressasse rico e famoso.
Entretanto, a distância tornava-as ainda mais preciosas. O sexto membro da tripulação
não estava interessado nestas coisas, pois não era humano. Tratavase do
altamente avançado computador HAL 9000, cérebro e sistema nervoso da nave. O
Hal (de computador Algorítmico Heuristicamente programado, nada mais, nada
menos), era uma obra-prima da terceira vaga de computadores.
[...]
Hal fora treinado para aquela
missão tão minuciosamente como os seus colegas humanos e a várias vezes os seus
ritmos de entradas, pois, além de possuir uma velocidade intrínseca, nunca
dormia. A sua tarefa principal consistia em monitorizar os sistemas de apoio de
vida, verificando continuamente a pressão do oxigênio, a temperatura, fugas no
casco, radiação, e todos os outros factores, dos quais dependiam as vidas da
frágil carga humana. Era ele que se encarregava das intrincadas correções de
navegação, e executava as necessárias manobras de voo quando chegava a altura
de mudar de rumo. E vigiava os homens em hibernação, fazendo os ajustamentos
necessários e racionando as quantidades mínimas dos fluidos intravenosos que os
mantinham vivos.
[...]
R. Terceira pessoa. Narrador observador.
2. O que está sendo narrado?
R. O narrador fala sobre o que passa no íntimo da personagem David.
3. Qual é a estratégia para chegar a Saturno?
R. Utilizar o campo gravitacional de Jupiter como um estilingue, para lançar a nave Discovery ainda mais longe do Sol e atingir Saturno.
4. O que aconteceria com a Discovery ao se aproximar de Saturno?
R. A Discovery entraria em órbita de estacionamento de Saturno, tornando-se uma nova lua do planeta gigante. No final dos 100 dias, ela encerraria suas atividades.
5. Em que consistia o processo de hibernação?
R. Na indução da hibernação, um longo sono dos astronautas, que assim, ficariam inconscientes durante o período em que não fossem necessárias para a missão. Dessa forma, seriam poupados alimentos, objetos de consumo e outras despesas.
6. O que eram os monitores de EEG e para que serviam?
R. Eram as assinaturas eletrônicas dos astronautas hibernados. Marcavam a atividade cerebral dos astronautas, o grau de consciência durante a hibernação.
7. Quem sabia o verdadeiro propósito da missão?
R. Somente Hal conhecia o verdadeiro propósito da missão.
8. Qual é a importância do flashback para a construção da plausibilidade, isto é, para que o leitor aceite a ficção como uma verdade possível?
R. O flashback constrói uma plausibilidade, a verossimilhança (verdade), pelas combinações coerentes dos indicadores lógicos, tecnológicos e científicos narrados no flashback no Universo distorcido da ficção científica.
9. Onde termina o flashback?
R. Termina junto com o capítulo 15.
10. Quais marcas linguísticas indicam a volta ao mesmo momento inicial da narrativa?
R. "Mas agora".
11. O que se narra nesse capítulo e no seguinte?
R. O distanciamento progressivo da Discovery em relação ao planeta Terra.
12. Sequências descritivas podem permear as narrativas. É o que acontece no segundo, no terceiro e no quarto parágrafos do capítulo 16. Responda:
a) O que está sendo descrito?
R. A Terra vista pelo telescópio de alinhamento de antenas.
b) Trata-se de uma descrição objetiva ou subjetiva?
R. Subjetiva, pois a linguagem é mais emotiva.
c) De quem é o ponto de vista?
R. De David.
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