Leia o texto abaixo e responda o que se pede:
Brainworms: música que não sai da cabeça
Às vezes a imaginação musical normal transpõe um limite e se torna, por assim dizer,
patológica, como quando determinado fragmento de uma música se repete
incessantemente por dias a fio e às vezes nos irrita. Essas repetições, em geral uma frase
ou tema breve e bem definido de três ou quatro compassos, tendem a continuar por
horas ou dias, circulando na mente, antes de desaparecer pouco a pouco. Essa repetição
interminável e o fato de que a música em questão pode ser banal ou sem graça, não nos
agradar ou até mesmo ser abominável, indica um processo coercivo: a música entrou e
subverteu uma parte do cérebro, forçando-o a disparar de maneira repetitiva e autônoma
(como pode ocorrer com um tique ou uma convulsão).
Um jingle publicitário ou a música-tema de um filme ou programa de televisão podem
desencadear esse processo para muitas pessoas. Isso não é coincidência, pois a indústria
da música cria-os justamente para "fisgar" os ouvintes, para "pegar" e "não sair da
cabeça", introduzir-se à força pelos ouvidos ou pela mente como uma lacraia. Vem daí o
termo em inglês earworms (algo como "vermes de ouvido"), se bem que até poderíamos
chamá-los de brainworms, ou "vermes de cérebro" (em 1987 uma revista jornalística,
para gracejar, definiu-os como "agentes musicais cognitivamente infecciosos").
Um amigo meu, Nick Younes, contou-me como a música "Love and marriage", de
James Van Heusen, não lhe saiu da cabeça. Ouvi-la uma única vez, cantada por Frank
Sinatra como música-tema do programa de televisão "Married with children" [Um amor
de família], já bastou para fisgar Nick. Ele ficou "preso no ritmo da música", e ela tocou
em sua mente quase sem parar durante dez dias. Com a repetição incessante, ela logo
perdeu o encanto, a animação, a musicalidade e o significado. A música interferia em
seu trabalho na escola, em seu pensamento, em sua paz de espírito, em seu sono. Ele
tentou interrompê-la de vários modos, porém não conseguiu. "Dei muitos pulos. Contei
até cem. Joguei água no rosto. Tentei falar em voz alta comigo mesmo, tapando os
ouvidos." Por fim, ela desapareceu aos poucos - mas quando ele me contou essa
história, ela voltou a persegui-lo por várias horas.
Embora o termo earworm tenha sido usado pela primeira vez na década de 1980 (como
uma tradução literal do alemão Ohrwurm), o conceito não tem nada de novo. Já na
década de 1920 Nicholas Slonimsky, compositor e musicólogo, estava deliberadamente
inventando formas ou frases musicais que pudessem fisgar a mente e forçá-la à imitação
e à repetição. E em 1876 Mark Twain escreveu um conto, "A literary nightmare" [Um
pesadelo literário], depois reintitulado "Punch, brothers, punch" [Soquem, irmãos,
soquem], no qual o narrador se vê indefeso diante de algumas "rimas bem cadenciadas":
Elas tomaram posse total e instantânea de mim. Durante todo o café-da-manhã valsaram
pelo meu cérebro. [...] Por uma hora, lutei com todas as forças, mas em vão. Minha
cabeça não parava de cantarolar. [...] Fui dar uma volta pelo centro da cidade, e logo
descobri que meus pés estavam marcando o ritmo daquela melodia implacável. [...]
Anoiteceu e eu continuei a cantarolar, fui para a cama, rolei, me revirei e cantarolei
noite adentro.
Dois dias depois, o narrador encontra um velho amigo, um pastor, e inadvertidamente o
"infecta" com a música; o pastor, por sua vez, inadvertidamente infecta toda a
congregação.
O que está acontecendo, nas esferas psicológica e neurológica, quando uma música ou
um jingle se apossa de alguém dessa maneira? Quais são as características que tornam
uma melodia ou canção assim tão "perigosa" ou "infecciosa"? Será alguma
singularidade do som ou do timbre, do ritmo ou da melodia? Será a repetição? Ou será o
despertar de ressonâncias ou associações emocionais especiais?
[...]
Os meus primeiros brainworms podem ser reativados pelo ato de pensar neles, muito
embora remontem a mais de sessenta anos. Muitos deles parecem ter uma forma
musical bem distinta, uma singularidade tonal ou melódica, e isso pode ter sido
importante para imprimi-los na minha mente. E também tiveram significado e emoção,
pois em geral eram canções e litanias judaicas associadas ao sentimento de herança e
história, a um sentimento de acolhida e união familiar. Uma canção favorita era "Had
Gadya" [Uma cabrita, em aramaico]. Era uma canção repetitiva, com refrão crescente,
que sem dúvida foi cantada (em sua versão hebraica) muitas vezes na nossa família
ortodoxa. As adições, que se tornavam cada vez mais longas a cada verso, eram
cantadas com uma ênfase melancólica que terminava em uma lamentosa quarta. Essa
pequena frase de seis notas em tom menor era cantada (eu contei!) 46 vezes no decorrer
da canção, e tal repetição martelava-a na minha cabeça. Ela me perseguia e me surgia na
mente dezenas de vezes ao dia por todos os oito dias da Páscoa judaica, depois diminuía
pouco a pouco até o ano seguinte. As qualidades de repetição e simplicidade, ou aquela
estranha e incongruente quarta agiriam, talvez, como facilitadores neurais, ativando um
circuito (pois era essa a impressão) que se reexcitava automaticamente? Ou será que o
humor soturno da canção, ou ainda seu contexto litúrgico solene, tinham também um
papel significativo?
Ao que parece, porém, não faz diferença se essas músicas tenazes têm letra ou não. Os
temas sem letra de Missão: Impossível e da Quinta sinfonia de Beethoven podem ser tão
irresistíveis quanto um jingle publicitário no qual a letra é quase inseparável da música.
Para portadores de certos distúrbios neurológicos, os brainworms ou fenômenos afins -
a repetição ecoante, automática ou compulsiva de tons ou palavras - podem adquirir
força adicional. Rose R., uma das pacientes parkinsonianas que descrevi em Tempo de
despertar, contou-me que muitas vezes se viu "confinada em um cercado musical",
durante seus estados suspensos: sete pares de notas (as catorze notas de "Povero
rigoletto") que se repetiam irresistivelmente em sua cabeça. Ela também comentou que
essas notas formavam um "quadrilátero musical", cujos lados ela era forçada a percorrer
mentalmente sem parar. Às vezes isso prosseguia durante várias horas, e ocorreu
durante todos os 43 anos de sua doença, antes de ela ser "despertada" pela levodopa.
O fenômeno dos brainworms também parece semelhante ao modo como os portadores
da síndrome de Tourette ou de distúrbio obsessivo-compulsivo podem ser fisgados por
um som, uma palavra ou um ruído e repeti-lo, ecoá-lo em voz alta ou para si mesmos
por semanas a fio. Isso ocorria notavelmente com Carl Bennet, o cirurgião com
síndrome de Tourette que descrevi em Um antropólogo em Marte. "Nem sempre se
pode encontrar sentido nessas palavras", ele disse. "Em geral é apenas o som que me
atrai. Qualquer som estranho, qualquer nome peculiar pode começar a repetir-se, a me
impelir. Fico preso a uma palavra por dois ou três meses.
Uma bela manhã, ela some, e
aparece outra em seu lugar." Mas enquanto a repetição involuntária de movimentos,
sons ou palavras tende a ocorrer em portadores da síndrome de Tourette, de distúrbio
obsessivo-compulsivo ou de lesão nos lobos frontais do cérebro, a repetição interna
automática ou compulsiva de frases musicais é quase universal - o mais claro sinal da
avassaladora e às vezes irresistível sensibilidade do nosso cérebro à música.
Talvez exista, nesse caso, um continuum entre o patológico e o normal, pois os
brainworms, embora possam aparecer de modo súbito, já totalmente desenvolvidos, e se
apossar de imediato e por completo de uma pessoa, também podem desenvolver-se
como uma espécie de contração de imagens mentais musicais previamente normais. Nos
últimos tempos tenho desfrutado de reproduções mentais dos Concertos para piano n.os
3 e 4 de Beethoven na gravação dos anos 1960 de Leon Fleisher.
Esses "replays"
tendem a durar de dez a quinze minutos, e consistem em movimentos completos. Eles
surgem sem ser chamados duas ou três vezes por dia, mas são sempre bem-vindos. Uma
noite destas, porém, quando eu estava tenso e insone, o caráter deles mudou: eu ouvia
apenas uma única passagem rápida de piano (próxima do início do Terceiro concerto
para piano), que durava dez ou quinze segundos e se repetia centenas de vezes. Era
como se agora a música estivesse presa a uma espécie de loop, um apertado circuito
neural do qual ela não podia escapar. Pela manhã, felizmente, o looping cessou, e pude
apreciar os movimentos completos de novo.
Os brainworms costumam ser estereotipados e invariáveis. Tendem a ter certa
expectativa de vida, atuando a todo vapor durante horas ou dias e depois desaparecendo,
com exceção de alguns "espasmos" residuais. No entanto, mesmo quando parecem ter
sumido, tendem a manter-se à espreita: permanece uma sensibilidade exacerbada, de
modo que um ruído, uma associação, uma referência a eles pode tornar a desencadeálos, às vezes anos depois. E são quase sempre fragmentários. Todas essas qualidades
são familiares para muitos epileptologistas, pois elas lembram acentuadamente o
comportamento de um pequeno foco epileptogênico de início súbito que irrompe,
convulsiona-se e por fim se aquieta, mas fica sempre pronto para reanimar-se.
Alguns de meus correspondentes comparam os brainworms a pós-imagens visuais, e eu,
sendo propenso a ambas as coisas, também vejo tal semelhança. (Estou usando o termo
"pós-imagens" aqui em um sentido especial, para denotar um efeito muito mais
prolongado do que as fugazes pós-imagens que temos por alguns segundos depois de,
por exemplo, ficarmos expostos a uma luz muito forte.) Após examinar EEGs por várias
horas, às vezes sou obrigado a parar, pois começo a ver traçados de EEG pelas paredes e
pelo teto.
Se eu dirigir um dia inteiro, acabo vendo campos, sebes e árvores passando
por mim em um fluxo contínuo que me mantém acordado à noite. Quando passo o dia
num barco, sinto o balanço por horas depois de voltar a terra firme. E os astronautas,
depois de passarem uma semana em condições de gravidade zero no espaço, ao
regressar precisam de vários dias para reaver suas "pernas terrestres". Todos esses são
efeitos sensoriais básicos, ativados pela hiperestimulação de sistemas sensoriais de nível
inferior. Os brainworms, em contraste, são construções perceptuais, criadas em um
nível muito superior do cérebro.
E, no entanto, ambos refletem o fato de que certos
estímulos, como traçados de EEG, música e pensamentos obsessivos, podem
desencadear atividades persistentes no cérebro.
Alguns atributos das imagens mentais musicais e da memória musical não têm
equivalentes na esfera visual, e esse fato pode nos dar um vislumbre do modo
fundamentalmente diferente de como o cérebro trata a música e a visão. Essa
singularidade da música talvez se deva, em parte, à necessidade que temos de construir
um mundo visual para nós, daí resultando que um caráter seletivo e pessoal impregna
nossas memórias visuais desde o início. As músicas, em contraste, já recebemos
construídas.
Uma cena visual ou social pode ser construída ou reconstruída de inúmeros
modos distintos, mas a recordação de uma música tem de assemelhar-se ao original. É
claro que ouvimos seletivamente, com diferentes interpretações e emoções, mas as
características musicais básicas de uma composição - o tempo, o ritmo, os contornos
melódicos, e até mesmo o timbre e o tom - tendem a ser preservados com notável
exatidão.
É essa fidelidade, essa gravação quase irresistível da música no cérebro, que
desempenha um papel crucial para nos predispor a certos excessos, ou patologias, com
imagens mentais musicais e memória musical, excessos esses que podem ocorrer até
com pessoas relativamente não-musicais.
Obviamente, na própria música existem tendências inerentes à reiteração. Nossos
poemas, baladas e canções são ricos em repetições.
Cada obra de música clássica possui
suas marcas para indicar as repetições ou variações sobre um tema, e os nossos maiores
compositores são mestres da repetição; as rimas infantis e as cantigas que ensinamos às
crianças pequenas têm coros e refrões. Somos atraídos pela repetição, mesmo quando
adultos; queremos o estímulo e a recompensa várias vezes, e a música nos dá. Portanto,
talvez não devamos nos surpreender nem reclamar se a balança de vez em quando
pender muito para o outro lado e nossa sensibilidade musical tornar-se uma
vulnerabilidade.
É possível que os earworms sejam, em certa medida, um fenômeno moderno, pelo
menos um fenômeno não só mais claramente reconhecido, mas extremamente mais
comum do que jamais foram? Embora sem dúvida existam earworms desde que nossos
antepassados pela primeira vez tocaram notas em flautas de osso ou tamborilaram em
troncos caídos, é significativo que o termo só tenha entrado para o uso comum em
décadas recentes. Quando Mark Twain escrevia nos anos 1870, havia bastante música
para se ouvir, mas ela não era onipresente. Era preciso procurar outras pessoas para
ouvir cantos (e participar deles): a igreja, as reuniões de família, as festas.
Para ouvir
música instrumental, quem não possuía piano ou outro instrumento em casa tinha de ir à
igreja ou a um concerto. Tudo isso mudou radicalmente com o advento das gravações,
das transmissões radiofônicas e dos filmes. De repente, a música passou a estar por toda
parte, e a magnitude dessa disponibilidade multiplicou-se muitas vezes nas duas últimas
décadas. Hoje estamos cercados por um incessante bombardeio musical, queiramos ou
não.
[...]
Metade de nós vive plugada em iPods, 24 horas imersa em concertos com repertório da
própria escolha, praticamente alheia ao ambiente. E para quem não está plugado há a
música incessante, inevitável e muitas vezes ensurdecedora nos restaurantes, bares, lojas
e academias. Essa barragem musical gera certa tensão em nosso sistema auditivo
primorosamente sensível, o qual não pode ser sobrecarregado sem temíveis
conseqüências. Uma delas é a grave perda de audição encontrada em parcelas cada vez
maiores da população, mesmo entre os jovens e particularmente entre os músicos. Outra
são as irritantes músicas que não saem da cabeça, os brainworms que chegam sem ser
chamados e só vão embora quando bem entendem. Podem não passar de anúncios de
creme dental, mas neurologicamente são irresistíveis.
Disponível em: <Microsoft Word - alucinacoes musicais.doc (travessa.com.br)>. Acesso em: 26 de mai de 2022.
1. Qual é o assunto (temática) do texto?
2. Qual é o trecho em que a neurologia explica o acontecimento referido? Escreva-o.
3. Qual é a finalidade do gênero textual ensaio?
4. Transcreva algumas figuras de linguagem encontradas no texto.
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