Leia o texto e responda o que se pede:
História de Trancoso
Joel Rufino dos Santos
Era uma vez um fazendeiro podre de rico, que viajava solitário.
— Ah, quem me dera encontrar por aí um companheiro de estrada...
Não é que encontrou? Num rancho em que parou para beber água, o fazendeiro achou um padre querendo seguir viagem, mas morria de medo.
— Pode-se saber de que vossa senhoria tem medo? — perguntou o fazendeiro.
— De curupira. Me avisaram que a estrada está assim deles.
— Não se avexe — falou o fazendeiro. — Comigo não tem curupira nem mané-curupira. Venha comigo.
Andaram que andaram. Quando já ia escurecendo, ouviram a mata bulir.
O padre se benzeu, o fazendeiro preparou a espingarda.
— Se for encantado vai virar peneira — avisou.
— Calma — gritou uma voz de taquara rachada. — É gente que aqui vai.
— Se é cristão se aproxime — gritou o padre, medrosão.
Era um roceiro montado num burro velho.
— Posso entrar nesse cortejo? — perguntou com respeito.
O roceiro tinha um só dente na frente e cara de bobo.
O fazendeiro e o padre torceram o nariz. Mas lá seguiram viagem.
Anda que anda, só os dois proseando.
O roceiro tinha lá papo para aquela conversa de doutor?
De quando em vez destampava uma moringa e bebia um gole d'água.
O padre e o fazendeiro morrendo de sede.
O padre não aguentou mais:
— Sou servido um gole desta água. Pra matar minha sede.
O roceiro emprestou a moringa ao padre.
O fazendeiro, porém, aguentou firme. O roceiro de quando em quando ofertava:
— Um golinho d'água, nhonhô? Tá fresca, fresca...
Até que o fazendeiro se entregou:
— Já que vosmicê tanto insiste, me dê cá a saborosa.
O fazendeiro não tinha era coragem de botar a boca onde o roceiro botava a sua.
Procurou um lugarzinho lascado, pensamentando: “Nesse lascado ele não deve usar”.
— Gozado, nhonhô — disse o roceiro. — É mesmo aí, nesse quebradinho, que acostumo de beber.
Os três viajantes pararam numa venda. Comeram jabá, com feijão e mandioca, depois um copo
de jurubeba.
Antes de dormir, não é que o dono da venda pegou um queijo de cabra e deu de presente pra eles?
Tão pequetitinho que nem dava para dividir.
O padre, que era muito sabido, deu uma ideia:
— Vamos dormir. Quem tiver o sonho mais bonito fica com o queijo.
Dormiram que Deus deu. No canto do primeiro galo pularam da cama, selaram os cavalos en-
quanto o roceiro ajeitava seu burro velho. Engoliram um café com vento... E pé na estrada.
A fome apertou, o padre foi contando o seu sonho:
— Sonhei com uma grande escada de ouro, cravejada de marfim. Começava juntinho do meu
travesseiro... Furava as nuvens lá em riba... Ia subindo, subindo... E sabem onde terminava?
— Não — respondeu o fazendeiro.
— No céu. Ninguém pode sonhar coisa mais bonita. Conforme combinado, o queijo é meu.
— Pois eu — disse o fazendeiro, picando o rolo de fumo — sonhei com um lugar iluminadão. Só
que não tinha lâmpadas.
— Como não tinha lâmpadas? — perguntou o padre.
— A luz nascia das coisas — explicou o fazendeiro.
— Vocês já viram um cacho de banana servindo de lustre? Pois nesse lugar tinha. Já viram areia
de prata de puro diamante? Pois era assim nesse lugar que sonhei.
— E pode-se saber que lugar era este? — perguntou o padre, sem jeitão.
— O céu. Você sonhou com a escada pro céu. Eu sonhei que já estava
lá. Conforme combinado, o queijo é meu.
O fazendeiro foi abrindo o surrão para pegar o queijo. Jacaré achou?
Nem ele.
— Ué! Onde se meteu o danado?
— Agora que vocês contaram o sonho — falou o roceiro —, tenho uma coisa pra contar.
O padre e o fazendeiro olharam o roceiro de banda.
— Cês não ouviram um barulho de noite? Pois era eu que me levantei pra comer o queijo.
Como vocês estavam no céu, achei que não precisavam mais do queijo.
Sabem quem era esse roceiro?
Trancoso.
SANTOS, Joel Rufino dos. O saci e o curupira e outras histórias
do folclore. São Paulo: Ática, 2017. p. 45-52.
VOCABULÁRIO
bulir: mexer-se, mover-se.
encantado: nesse contexto, equivale a um ser sobrenatural.
taquara: bambu.
jabá: carne bovina salgada e seca ao sol.
jurubeba: planta usada para fazer chá.
submisso: que aceita estar em uma posição inferior.
enojado: que sente nojo.
O conto lido é da tradição popular oral. É importante que ele seja lido também em voz alta, com muita expressividade.
1 Nesse conto popular destacam-se três personagens centrais. Como esses personagens são nomeados no texto?
2. Só um desses personagens foi caracterizado de acordo com a aparência física. Escreva o nome desse personagem e as características relacionadas a ele.
3 É possível perceber também as características da personalidade desses personagens, na leitura do conto?
4. Escreva o nome do personagem diante de cada uma das características. Em seguida, escreva a justificativa, ou seja, a razão pela qual você indicou aquele personagem.
a) O mais medroso.
b) O que procura demonstrar que é corajoso.
c) O que parecia ser o mais humilde ou submisso.
d) O que parecia ser o mais esperto.
e) O mais enojado.
f) O que foi realmente o mais esperto.
4.Releia estes dois trechos do conto:
Dormiram que Deus deu. No canto do primeiro galo pularam da cama, selaram os cavalos enquanto o roceiro ajeitava seu burro velho. Engoliram um café com vento... E pé na estrada.
A fome apertou, o padre foi contando o seu sonho:
— Cês não ouviram um barulho de noite? Pois era eu que me levantei pra comer o queijo. Como vocês estavam no céu, achei que não precisavam mais do queijo.
Responda às questões.
5. Quando o roceiro comeu o queijo, já sabia qual era o sonho de cada um dos companheiros? Explique sua resposta.
6. Que estratégia ele utilizou para justificar a posse do queijo?
7. O que você pensa da atitude de contar uma mentira e se utilizar da esperteza para ficar com o queijo?
8. No fim do conto o roceiro é identificado pelo narrador como Trancoso. Ele é o personagem principal da história? Justifique sua resposta com base em elementos do conto.
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