quarta-feira, 25 de maio de 2022

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

 Leia o texto e responda o que se pede:

Modos de xingar

— Biltre!
— O quê?
— Biltre! Sacripanta!
— Traduz isso para português.
— Traduzo coisa nenhuma. Além do mais, charro! Onagro!
Parei para escutar. As palavras estranhas jorravam do interior de um Ford de bigode. Quem as proferia era um senhor idoso, terno escuro, fisionomia respeitável, alterada pela indignação. Quem as recebia era um garotão de camisa esporte; dentes clarinhos emergindo da floresta capilar, no interior de um fusca. Desses casos de toda hora: o fusca bateu no Ford. Discussão. Bate-boca. O velho usava o repertório de xingamentos de seu tempo e de sua condição: professor, quem sabe? leitor de Camilo Castelo Branco.
Os velhos xingamentos. Pessoas havia que se recusavam a usar o trivial das ruas e botequins, e iam pedir a Rui Barbosa, aos mestres da língua, expressões que castigassem fortemente o adversário. Esse material seleto vinha esmaltar artigos de polêmica (polemizava-se muito nos jornais do começo do século), discursos políticos (nos intervalos do estado de sítio, é lógico) e um pouco os incidentes de calçada.
A maioria, sem dúvida, não se empenhava em requintes. Mesmo na imprensa, que se dizia amarela e depois virou marrom, ou na de cores mais amenas, a palavra safardana tinha curso fluente. “Safardana”, mais veemente que “safado”, levava em sua companhia a variante “grandessíssimo safado”, de emprego recomendável como preliminar ao desforço físico, a bengaladas. “Grandessíssimo” dilatava enormemente a ofensa, e como revide só mesmo o palavrão universal, que não é necessário reproduzir aqui.
Ladrão”, simplesmente, não convencia. Adotavam-se formas sofisticadas, como “ladravaz”, “ladroaço”. Muitos preferiam “larápio”, fazendo-o acompanhar de movimento giratório dos dedos da mão direita em torno do eixo do polegar. “Ratoneiro” também tinha clientes. E “gatuno” (“esta noite entrou gatuno lá em casa”) aplicava-se aos que, com mão de gato, surrupiavam tanto um relógio como uma ideia.
Jamais aprovei o uso indevido de nomes de animais para qualificar ou verberar deficiências intelectuais ou morais do próximo. A injustiça feita ao cachorro, alçado a “cachorrão”, como sinônimo de mau-caráter, dói e revolta. A zebra não é responsável pelo baixo QI de seres humanos, nem o camelo tampouco. Burro, burroide, besta, bestalhão, jumento: outros exemplos de impropriedade vocabular, que não recomendam a linguagem crítica. Irracionais prestantes, muitas vezes providos de razão prática luminosa, não costumam, que eu saiba, xingar os de sua espécie com invectivas desta ordem:
— Homem!
— Homúnculo!
— Reverendíssimo homem!
Onde aprecio os antigos é na graça de certos epítetos, que não chegam a desaforo; ficam no plano do humor. Assim o “mariola”, que curtia vida de malandro; o “mandrião”, que fugia do trabalho como fugimos hoje dos automóveis; o “salta-pocinhas”, o “valdevinos”…
— Aquilo é um sevandija.
Aí, a classificação começa a engrossar. Não é agradável ouvir que nos chamam de parasita. Mas “peralvilho”, quem se zangava? “Badameco” e “bonifrate” ardiam um pouco na pele. “Peralta”…
Tertuliano, frívolo peraltado soneto de Artur Azevedo, não deixava de ser um cara simpático. Não há mais peraltices. Hoje, são violentas as jogadas. E as expressões cáusticas ou irônicas, mais limitadas. Com dois ou três palavrões, qualificamos tudo. Aquele senhor do Ford de bigode, com seu palavreado escorreito, como o admiro. Salve, paladino do pulcro dizer, no instante da ira! Com exceção do “onagro”: o animal não merecia trato pejorativo. Respeitemos a natureza, até na cólera.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Modos de xingarIn, Poesia e prosa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1979, p. 1411/1413)

1.Qual é a ideia principal do texto?

2. Qual é o significado das palavras "biltre" e "sacripanta"?

3. Qual é a estranheza que o narrador acha em relação ao idoso?

4. A ironia é a forma de dizer o contrário do que queremos. Nesse contexto, o narrador faz uso da ironia e assim dá uma explicação para o uso dos xingamentos utilizados pelo idoso. O que ele diz sobre isso?

5. Em relação a língua veiculada no texto (crônica), o que se pode interpretar disso?

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