MORTE
E VIDASEVERINA -
João
Cabral de Melo Neto
JOÃO CABRAL DE
MELO NETO (1920-1999)
1.
Sobre o Autor
João
Cabral de Melo Neto nasce em 1920, no Recife, primo de Manuel Bandeira e de
Gilberto Freire, passando a infância como menino de engenho. Aos dez anos
inicia o curso primário no Colégio Marista do Recife, para onde a família havia
se mudado. Aos 18 anos faz parte da roda boêmia e literária do Café Lafayette,
da qual participava o pintor Vicente do Rego Monteiro. Numa viagem ao Rio de
Janeiro, aos vinte anos, conhece Drummond, Murilo Mendes e outros intelectuais,
que se reuniam no consultório de Jorge de Lima. Seu primeiro livro é Pedra
do sono, publicado em 1942. Vivendo no Rio de Janeiro, passa a freqüentar a
roda literária do Amarelinho e do Vermelhinho, no centro da cidade, a partir de
1943, ano em que publica Os três mal-amados,na Revistado Brasil.
No ano em que publica O engenheiro (1945), faz concurso para o
Itamaraty, seguindo carreira diplomática.
Vivendo
como diplomata em Barcelona, João Cabral toma-se amigo de poetas e artistas,
sobretudo do artista plástico Miró. Em 1947, ele próprio imprime, em uma prensa
manual, o volume de Psicologia da composição. Acusado de subversão, é
removido de Londres para o Brasil, onde responde inquérito em 1952. Posto em
disponibilidade sem salário trabalha como secretário de redação do jornal A
Vanguarda, dirigido por Joel Silveira, durante o ano de 1953. Com o
processo arquivado, é reintegrado à carreira diplomática no ano seguinte. Em
1956, a Editora José Olympio publica Duas águas, volume reunindo os
poemas anteriores e os inéditos Morte e vida severina, Paisagens com figuras
e Uma faca só lâmina. Ganhador de vários prêmios e poeta dos mais
importantes João Cabral é eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1969.
A sua vivência em Barcelona e Sevilha, na Espanha, inspiraria muitos dos seus
poemas, sobretudo pela semelhança que o poeta encontrava desta última cidade
com o Recife, de que resulta Sevilha andando,em 1990,e a antologia Poemas
sevilhanos,em 1992. Morre no Rio de Janeiro, como o último dos grandes
poetas do Brasil contemporâneo, em 1999,tendo em Morte e vida Severina a
sua obra mais divulgada, em poesia, em teatro e em música.
2. Uma Palavra
Crítica
Marly
de Oliveira, em estudo sobre a obra de João Cabral de Melo Neto, chama a
atenção para o fato de que sua poesia não é simples ou fácil, nem procura
iludir com a musicalidade dos versos como é tão comum na lírica brasileira. O
motivo, diz ela, é que "esta é uma poesia anti-lírica, é uma poesia dirigida
ao intelecto e, de certa forma, mais presa à realidade que o mesmo autor, que
sempre teve por função de trabalho, cindidos, o pensar sobre a matéria do poema
e o dia-a-dia de funcionário público, ocupado com negociações internacionais,
independentes da coerência de sua visão do mundo”. Aceitamos a definição de
poesia cerebral de João Cabral, embora haja necessidade de se discutirem as
afirmações de Marly de Oliveira, pois a musicalidade nos versos de Cabral é
decisiva, sobretudo, num poema como Morte e vida severina, e a sua
poesia, apesar de seca e econômica, ainda assim mostra um lirismo agônico, que
se não é o lirismo arrebatado dos românticos, não deixa de demonstrar
sentimento e emoção. Atente-se para o que a crítica diz mais adiante, que
confirma a nossa posição (os itálicos são nossos):
"Depois defeitos os estudos
no Recife, a vinda para o Rio de Janeiro e o ingresso na vida diplomática, que
o leva pelo mundo, é que tem a Necessária distância para
ver melhor, com pungência e preocupação, a
verdadeira realidade de
Pernambuco e do Nordeste em geral"
Poesia cerebral,
pois. Poesia que procura refletir sobre o fazer poético, despojada de qualquer confessionalismo.
É assim que Marly de Oliveira vê a produção do poeta, situada cronologicamente
na chamada Geração de 45. A crítica não considera o seu primeiro livro – Pedra
do sono- revolucionário, embora assumisse certas propostas doutrinárias do
Modernismo, pela afinidade com a poesia de Carlos Drummond de Andrade e com
Manuel Bandeira. Só a partir de Psicologia da composição, de 1947,
surgiria com vigor "uma exaltação da secura, do deserto, da pedra: a
estética do avesso e do não." Uma poesia que prefere o
símile à metáfora. A sua procura de objetividade no poema, o leva à recusa de
falar do amor, embora produza poema para a figura feminina, às vezes erótica,
sob a ótica objetiva, criando imagens poucos convencionais para o leitor, como
se pode ver em "Estudos para uma bailadora andaluza", em que surge a
imagem insólita da bailarina fundida em cavaleira e égua, em heptassílabos de
rimas toantes:
Subida
ao dorso da dança,
(vai
carregar ou a carrega?)
é
impossível se dizer
se
é cavaleira ou a égua.
Ela
tem na sua dança
toda
a energia retesa
e
todo o nervo de quando
algum
cavalo se encrespa.
Isto
é: tanto a tensão
de
quem vai montado em sela,
de
quem monta um animal
e
só a custo o debela,
como
a tensão do animal
dominado
sob a rédea,
que
ressente ser mandado
e
obedecendo protesta.
Então,
como declarar
Se
ela é égua ou cavaleira:
Há
uma tal conformidade
Entre
o que é animal e é ela,
Entre
a parte que domina
e
a parte que se rebela,
entre
o que nela cavalga
e
o que é cavalgado nela,
que
o melhor será dizer
de
ambas, cavaleira e égua,
que
são de uma mesma coisa
e
que um só nervo as inerva,
e
que é impossível traçar
nenhuma
linha fronteira
entre
ela e a montaria:
ela
é a égua e a cavaleira.
Em Pernambuco ou
em Sevilha, a poesia de João Cabral de Meio Neto vai além do regionalismo,
apesar das imagens recorrentes do mundo nordestino, do rio Capibaribe, da
miséria do homem explorado. Sua poesia toma como base a luta do fazer poético,
cortante como uma lâmina, seca como uma pedra, mas pujante e pungente como a
vida severina.
3.
Morte e vida severina: Vida
e Miséria/ Ressurreição e Esperança
"é
difícil defender,
só
com palavras, a vida"
Morte e vida
severina é
um longo poema narrativo - poema para voz alta, como o chamou João Cabral de
Melo Neto -, dividido em vários núcleos que se conjugam para tratar da viagem
do retirante Severino, do Sertão até o Recife, sendo ele próprio o narrador,
mesclando uma linguagem oralizada e coloquial a uma linguagem, por vezes,
erudita. Na estruturação de seu poema, João
Cabral de Melo Neto utiliza preferencialmente o verso redondilho maior, de modo
a tirar proveito do seu ritmo peculiar e popular, além das rimas toantes. A
viagem feita pelo Capibaribe, no poema-livro O rio, é agora feita pelo
sertanejo, fugido da seca de sua região, que tem o rio como guia, nos revelando
uma ambientação que vai do sertão seco ao mangue, passando pela Zona da Mata pernambucana,
apresentando os diversos matizes da miséria. Tentando uma síntese do
personagem, podemos dizer que Severino é despersonalizado, produto do
latifúndio e da falta de estrutura agrária, sujeito a morte prematura, sem
identidade, emigra para tentar salvar-se, perde-se na busca da salvação,
resignando-se com a morte, mas vê ressurgir a esperança de um dos mocambos do
mangue do Recife. Obedecendo a esta trajetória, podemos dividir o poema nos
seguintes núcleos:
1. Apresentação - Severino
que em vossa presença emigra;
2. Primeiro encontro com a
morte - Defunto embalado;
3. Segundo encontro com a
morte – Excelências para um defunto;
4. Terceiro encontro com a
morte - A morte na janela;
5. Quarto encontro com a morte
- Funeral para um lavrador;
6. Quinto
encontro com a morte - A Hierarquia da morte;
7. Consciência
da morte - Seguindo seu próprio enterro;
8. Resignação
e resistência- O salto para fora da vida;
9. Anunciação
- O salto para dentro da vida;
10. Esperança - Mãos que
criam coisas.
3.1 Partes
1. Apresentação
- Severino que em vossa presença emigra: Severino aparece despersonalizado,
sem nome de família, e os nomes que ele vai apondo em lugar de torná-lo
conhecido só acentua o seu anonimato. Nesse momento fica
bem clara a
situação gerada pelo latifúndio patriarca!, dos coronéis donos das propriedades
e dos seres, gerando filhos bastardos e miséria: são os Severinos de Maria do
finado Zacarias, vivendo na serra da Costela, limites da Paraíba, "vivendo
na mesma serra! magra e ossuda em que eu vivia". Na tentativa de definição
nem a vida nem a morte diferenciam os Severinos, sem individualidade, que
representam toda uma massa de explorados anônimos. Ao querer apresentar-se,
Severino acaba revelando um modo de vida que leva à morte prematura, uma vida
igual à morte - severina:
Somos
muito Severinos
iguais
em tudo na vida:
na
mesma cabeça grande
que
a custo é que se equilibra,
no
mesmo ventre crescido
sobre
as mesmas pernas finas,
e
iguais também porque o sangue
que
usamos tem pouca tinta.
E
se somos Severinos
iguais
em tudo na vida,
morremos
de morte igual,
mesma
morte severina:
que
é a morte de que se morre
de
velhice antes dos trinta,
de
emboscada antes dos vinte
de
fome um pouco por dia
(de
fraqueza e de doença
é
que a morte severina
ataca
em qualquer idade,
e
até gente não nascida).
Somos
muitos Severinos
iguais
em tudo e na sina:
e
de abrandar estas pedras
suando-se
muito em cima,
a
de tentar despertar
terra
sempre mais extinta,
a
de querer arrancar
algum
roçado da cinza.
Mas,
para que me conheçam
melhor
Vossas Senhorias
e
melhor possam seguir
a
história de minha vida,
passo
a ser o Severino
que
em vossa presença emigra.
O discurso
inicial de Severino vai revelando, apesar de sua fluência, a miséria de vida do
sertanejo: fome, doença, morte prematura, trabalho exaustivo, violência,
adversidade da região sem assistência levando ao êxodo rural. A relação com a
terra é sofrida, compreendida como sina, destino, como se o homem fosse
predestinado ao sofrimento. Severino não entende a sua situação, que é a de
tantos outros, como uma questão social injusta, por causa de uma estrutura
fundiária inexistente. Suar muito para "abrandar estas pedras" e
"querer arrancar! algum roçado da cinza" define o exaustivo e inútil
trabalho de lutar com uma terra esterilizada pelo homem. Embora Severino
apresente a possibilidade da morte, sobretudo através do vocabulário - pedra,
cinza, terra extinta -, esta só nos é revelada no segundo momento do poema.
2. Primeiro
Encontro com a Morte - Defunto embalado: Em sua retirada,
Severino
depara-se com dois homens carregando um defunto numa rede, "um
defunto de
nada" (172), que perdeu a vida numa emboscada, para lhe tirarem a pouca
terra que cultivava. A morte de um lavrador, que "já não lavra", desencadeia
a discussão sobre a violência no campo. A metáfora da bala como ave, a "ave-bala",
de destino certo e garantindo a "morte matada", porque "mais
longe vara" (173), expõe a luta do latifúndio contra o pequeno agricultor.
Nesse momento a metáfora passa a metonímia, com a "ave-bala" passando
a designar o latifundiário, não mais a bala que matou o agricultor, metonímia
reforçada pela espingarda, também tomada como o mandante do crime:
- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
- Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
dos intervalos das pedras,
plantava palha.
- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
- Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
- Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
- E agora o que passará,
irmãos das almas, -
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.”
Severino oferece
ajuda aos carregadores do defunto, pois sua caminhada o fará passar pelo
cemitério de Toritama, onde o defunto deverá ser enterrado. O defunto na rede
parece embalado pelos carregadores, tanto quanto foi embalado pela pássara
ave-bala.
3. Segundo Encontro com a Morte - Excelências
para um Defunto: Severino
retirante vai
seguindo o Capibaribe como seu guia, criando a metáfora das tantas
cidade por onde
passa como se fossem as contas de um rosário, e a estrada a linha. Essa
ladainha vai "até o mar onde termina" (176). Mas no rio Severino vê também
a identidade com a sua vida miserável. O Capibaribe cortado pela estiagem o
leva a uma encruzilhada cujo caminho ele desconhece:
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-Ia agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Escutando uma
cantaria, Severino aproxima-se de uma casa e depara-se
com um grupo
cantando excelências para um defunto. É de novo a morte em
seu caminho: um
Severino encontra 2 mortes severinas de dois outros Severinos. As excelências
vão sendo parodiadas por um homem do lado de fora do velório, revelando a
privação dos Severinos na vida como na morte, levando apenas consigo
"coisas de não:! fome, sede, privação", ou "coisas ocas, leves:/
como o caixão, que ainda deves" (177). Severino retirante começa a se
desiludir: perdeu o rumo, buscava vida, só encontrado a morte pelo caminho.
Pensa em interromper a viagem pelo caminho e procurar trabalho, até que a
próxima invernada trace seu rumo no rio cheio:
Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira) .
4. Terceiro
Encontro com a Morte - A Morte
na Janela: Severino dirige-se à
mulher na janela
da casa, travando um diálogo bizarro. Ele, que sempre trabalhoupara ganhar e
criar a vida, conversa com uma mulher cuja profissão é ajudar a morte. Este
diálogo entre a vida e a morte é um dos pontos altos do poema. Severino
respondendo às perguntas da mulher sobre sua ocupação vai desfiando um rosário
de profissões, que não têm qualquer serventia para aquelas bandas - lavrador,
vaqueiro, purgador de engenho. A terra sáfara e avara já não produz, nem os
bancos querem financiar uma agricultura improdutiva; já não há pasto, e os
bangüês foram substituídos pelas usinas. Severino diz algo que é conhecido da
mulher da janela:
- Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
- Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
- Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como a senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
- Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar. [...]
É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
Depois de
encontrar duas mortes, Severino encontra alguém que vive dela. A rezadora,
carpideira e cantadora de excelências, alegoria da morte. O final do discurso
da mulher é a dura revelação da consciência da morte e das
profissões que
giram em torno dela:
- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
,da gente que baixa ao mar,
retirante às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-las é fácil:
simples questão de plantar:
não se precisa de limpa,
de adubo nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear. (181-182)
Esta passagem
construída alegoricamente mostra a morte como um roçado de cultivo paradoxal:
as estiagens são a irrigação, a limpeza são as pragas, o adubo é a própria semente,
no caso o corpo. O resultado é uma colheita certa e imediata. E interessante
comparar esta passagem ao poema" Alto do Trapuá" (Paisagens com figuras,
160-162),em que o homem do eito, o miserável explorado, em geral, é visto
como espécie estranha e de difícil cultivo, embora se multiplique com facilidade.
Em suma, se a vida é cultura difícil, a morte "não se
precisa de limpa, de adubar nem
de regar" (182).
5. Quarto Encontro
com a Morte- Funeral para um Lavrador: Severino chega às
terras "femininas" da Zona da Mata. Na sua visão de retirante, ali
está a terra da promissão, com água em abundância. Ele tem a ilusão da fartura
e pensa que será fácil amansar aquela terra "branda e macia". Como
ele não avista ninguém só cana, imagina não ser necessário tanto trabalho em
terra tão fértil:
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
Decerto a gente daqui
Jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha. (183)
Nessa ilusão de fartura,
em meio ao canavial, Severino assiste ao enterro de um lavrador, num dos
momentos mais conhecidos do poema, uma página de ironia extrema, que revela a
violência decorrente dos conflitos da terra, mostrando a necessidade da reforma
agrária. Do latifúndio, a única terra a que o trabalhador tem direito é a sua
sepultura. Musicado por Chico Buarque de
Holanda, o trecho
abaixo torna-se hino da esquerda no Brasil:
- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
- Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
- É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
- E uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
- É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca. (183-184)
Ironicamente,
como proprietário dessa terra, o lavrador será "senhor, homem do
eito e trator", além de "semente, adubo, colheita" (184). Nesse
novo
encontro com a
morte, vê-se o retorno da metáfora da morte como semeadura,
do defunto como
semente e da cova como leirão. A terra abriga e veste o trabalhador com o
brim do Nordeste, numa alusão aos enterros em rede. Nu como a semente o
corpo toma a sepultura a um só tempo como coberta a mulher:
-
Despido vieste no caixão,
despido
também se enterra o grão.
-
De tanto te despiu a privação
que
escapou de teu peito a viração.
-
Tanta coisa despiste em vida
que
fugiu de teu peito a brisa.
-
E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol
que não tiveste em vida.
-
Se abre o chão e te fecha,
dando-te
agora cama e coberta.
-
Se abre o chão e te envolve,
como
mulher com quem se dorme. (186)
o
verbo despir aparece metaforicamente como privação, negação, ausência,
que
só será suprida pela morte. Na vida tudo falta, na morte tudo sobra.
Severino
fez a sua retirada para poder viver um pouco mais, no entanto, ele
toma
consciência de que a miséria na caatinga ou na Zona da Mata é a mesma,
a
diferença está na morte em terra "por aqui mais macia":
Está
apenas no pavio,
ou
melhor, na lamparina:
pois
é igualo querosene
que
em toda parte ilumina,
e
quer nesta terra gorda
quer
na serra, de caliça,
a
vida arde sempre com
a
mesma chama mortiça. (187)
6. Quinto
Encontro coma Morte - A Hierarquia da Morte: Severino chega ao Recife,
fim de sua viagem, e ainda assim encontra a morte na conversa de dois coveiros.
Os dois coveiros estabelecem hierarquias para a morte. A cidade rica tem menos
mortes, a cidade pobre tem mais mortes. Para designar as quantidades, surgem as
metáforas da cidade rica como um porto e as mortes aparecendo em um único
transatlântico por dia; já os bairros pobres são como estações de trens aonde
chegam diversos comboios diários..os bairros ainda mais pobres, como Casa
Amarela, são vistos como paradas de ônibus, "com filas de mais de cem"
(188). Um dos coveiros sintetiza a vida dos retirantes, que na sua visão
deveriam ser enterrados no rio, "mortalha e macio caixão d'água",
levando até o mar:
- E esse povo lá de
riba
de Pernambuco, da
Paraíba,
que vem buscar no
Recife
poder morrer de
velhice,
encontra só, aqui
chegando
cemitérios esperando.
- Não é viagem o que
fazem,
vindo por essa
caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu
próprio enterro. (191)
7. Consciência
da morte - Seguindo seu próprio enterro: A consciência da
morte fica mais
forte quando o retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe: não estivera
retirando, mas seguindo seu próprio enterro. Severino decide, então, apressar a
morte, pois "o morto ainda está com vida" (192):
A
solução é apressar
a
morte a que se decida
e
pedir a este rio,
que
vem também lá de cima,
que
me faça aquele enterro
que
o coveiro descrevia:
caixão
macio de lama,
Mortalha
macia e líquida,
Coroas
de baronesa
Junto
com flores de aninga,
e
aquele acompanhamento
de
água que sempre desfila
(que
o rio, aqui no Recife,
não
seca, vai toda a vida). (192-193)
8. Resignação
e resistência - O salto para fora da vida: Severino aproxima-se dos
mocambos no mangue e inicia um diálogo com o mestre carpina José sobre o rio, a
fome e a miséria. Para cruzar o rio, diz José carpina, usa-se a ponte e a fome
se cruza quando se come, embora a miséria seja um "mar largo" (193).
A miséria aparece também como mar a ser combatido, com a vida que se compra a
cada dia, a retalho. Severino, desesperança do, não acredita na resistência à vida
do mestre carpina e mostra-se resignado, desejando "saltar, numa noite / fora
da ponte e da vida" (194 ):
-
Seu José, mestre carpina,
e
quando é fundo o perau?
quando
a força que morreu
nem
tem onde se enterrar,
por
que ao puxão das águas
não
é melhor se entregar?
-
Severino, retirante
o
mar de nossa conversa
precisa
ser combatido,
sempre
de qualquer maneira,
porque
senão ele alaga
e
devasta a terra inteira.
-
Seu José, mestre carpina
e
em que nos faz diferença
que
como frieira se alastre,
ou
como rio na cheia,
se
acabamos naufragados
num
braço do mar miséria? (194)
-
Seu mestre, José carpina,
e
que interesse, me diga,
há
nessa vida a retalho
que
é cada dia adquirida?
espera
poder um dia
comprá-la
em grandes partidas?
-
Severino, retirante,
não
sei bem o que lhe diga:
não
é que espere comprar
em
grosso de tais partidas,
mas
o que compro a retalho
é,
de qualquer forma, a vida.
-
Seu José, mestre carpina,
que
diferença faria
se
em vez de continuar
tomasse
melhor saída:
a
de saltar, numa noite,
fora
da ponte e da vida? (195)
José
carpina (carpinteiro) de Nazaré da Mata acredita na vida e é
exatamente
o nascimento de seu filho que alimentará esta esperança.
9. Anunciação-
O salto para dentro da vida: É neste momento da anunciação
do nascimento do
filho do mestre carpina, que o poema se define como um auto de natal
(nascimento). É a esperança que surge, nasce o filho que salta para dentro da
vida. A aproximação com o nascimento de Cristo é evidente: o pai é carpinteiro
pobre, chama-se José e é de Nazaré... da Mata, e o filho nasce para trazer
esperança a todos. A chegada deste Jesus da lama extingue o mau cheiro da maré,
trazendo o cheiro desinfetante de alfazema dos sargaços que corre pelas ruas; o
vento seco enxuga a umidade do lamaçal; cantam-se louvores no céu e na terra;
os maruins não se apresentam, não faltando sequer a estrela da anunciação, pois
"este rio de água cega,/ ou baça, de
comer terra,/ que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas"
(196).
As oferendas são
trazidas: caranguejos, leites, papel de jornal, água da bica do rosário,
canário, bolacha d'água, boneco de barro, cachaça, abacaxi, ostras, rolete de
cana, tamarindo, jaca, mangabas, cajus, peixe, boi, siris, mangas e goiamuns.
As ciganas lêem a sua sorte. Uma prevê miséria anfíbia na lama; a outra,
esperança como operário:
- Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltara de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão. (198)
- Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é de lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe. (199)
o menino é magro, mas tem peso de homem,
numa alusão à magreza
miserável dos habitantes dos mangues.
Nele, no entanto, reside a beleza da
esperança de mudança:
- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
- Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
- Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
- E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
- Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
- Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
- Com oásis, o deserto,
com ventos acalmaria. (201)
10. Esperança
- Mãos que criam coisas: Seu José, mestre carpina, dá finalmente a
resposta a Severino retirante. Mesmo sabendo o quanto "é difícil defender,/
só com palavras, a vida", é preciso ter fé na vida, ainda que seja uma
vida severina:
Severino
retirante,
deixe
agora que lhe diga:
eu
não sei bem a resposta
da
pergunta que fazia,
se
não vale mais saltar
fora
da ponte e da vida;
nem
conheço essa resposta,
se
quer mesmo que lhe diga;
é
difícil defender,
só
com palavras, a vida,
ainda
mais quando ela é
esta
que vê, severina;
mas
se responder não pude
à
pergunta que fazia,
ela,
a vida, a respondeu
com
sua presença viva.
E
não há melhor resposta
que
o espetáculo da vida:
vê-la
desfiar seu fio,
que
também se chama vida,
ver
a fábrica que ela mesma,
teimosamente,
se fabrica,
vê-Ia
brotar como há pouco
em
nova vida explodida;
mesmo
quando é assim pequena
a
explosão, como a ocorrida;
mesmo
quando é uma explosão
como
a de há pouco, franzina;
mesmo
quando é a explosão
de
uma vida severina. (201-202)
O
poema é construí do em contraste (antíteses, paradoxos, ironias), revelando
a
vida sofrida do homem, frente à miséria da exploração, mesmo onde
existe
a fartura. O final é a celebração da fé na vida, procurando mostrar como
é
preciso lutar para poder transformar a vida. A explosão da vida é sempre
maior
que a morte, e mesmo uma vida severina ajudará a criar uma vida melhor.
4.
Exercícios
01.Identifique as figuras abaixo:
(a) “só a morte tem
encontrado quem pensava encontrar a vida."
(b)
“Nos magros lábios de areia/irmão das alma / dos intervalos das pedras,/ plantava
palha."
c)
"que é o melhor lençol dos mortos / noite fechada"
d)
"mas então porque o mataram/com espingarda![...]o que é que acontecerá!
Contra
a espingarda?
e)
"E não precisava dinheiro,/ e não precisava coveiro,e/ não precisava
oração,e/ não precisava inscrição."
f)
"que sempre pás e enxadas / foices de corte e capina,/ ferros de cova,estrovengas/
o meu braço esperariam.”
Mas
não senti diferença
Entre
o Agreste
e a Caatinga,
e
entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença
é a mais mínima.
Está
apenas em que a terra
É
por aqui mais macia;
02.A partir da leitura da estrofe
acima,qual é a constatação de Severino retirante, após tanta caminhada?
Sim,o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia;
é chegar logo a o Recife,
derradeira ave-maria
do rosário,derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
E esta minha viagem
se fina.
03.Explique as metáforas: ladainha,rosário
de nomes, derradeira ave-maria.
04.Porque o rio some no Recife?
e quer nesta terra
gorda
quer na serra,de caliça,
a vida arde sempre
com
a mesma chama mortiça.
05. O que representa a terra gorda?
E a serra de caliça?
06.Como se explica a metáfora da vida
sempre ardendo com a mesma chama mortiça'!?
Aqui ao menos há mais gente
Para atender a freguesia,
Para botar a caixa cheia
Dentro da caixa vazia.
07.Explique o que um dos coveiros
cuja conversa Severino escuta, quis dizer com os versos acima.
"Seu José, mestre
carpina,/
e quando ponte não
há?
quando os vazios da
fome!
Não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem
água!
são grandes braços
de mar?
"Severino,retirante
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para
cruzá-la
vale bem qualquer esforço."
08. Explique a linguagem figurada
existente nos versos acima.
09.Que paralelo poderíamos
traçar entre Morte e vida Severina e A bagaceira?
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