quarta-feira, 11 de novembro de 2020

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

 

MORTE E VIDASEVERINA - João Cabral de Melo Neto

 

JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1920-1999)

 


1.    Sobre o Autor

 

João Cabral de Melo Neto nasce em 1920, no Recife, primo de Manuel Bandeira e de Gilberto Freire, passando a infância como menino de engenho. Aos dez anos inicia o curso primário no Colégio Marista do Recife, para onde a família havia se mudado. Aos 18 anos faz parte da roda boêmia e literária do Café Lafayette, da qual participava o pintor Vicente do Rego Monteiro. Numa viagem ao Rio de Janeiro, aos vinte anos, conhece Drummond, Murilo Mendes e outros intelectuais, que se reuniam no consultório de Jorge de Lima. Seu primeiro livro é Pedra do sono, publicado em 1942. Vivendo no Rio de Janeiro, passa a freqüentar a roda literária do Amarelinho e do Vermelhinho, no centro da cidade, a partir de 1943, ano em que publica Os três mal-amados,na Revistado Brasil. No ano em que publica O engenheiro (1945), faz concurso para o Itamaraty, seguindo carreira diplomática.

 

Vivendo como diplomata em Barcelona, João Cabral toma-se amigo de poetas e artistas, sobretudo do artista plástico Miró. Em 1947, ele próprio imprime, em uma prensa manual, o volume de Psicologia da composição. Acusado de subversão, é removido de Londres para o Brasil, onde responde inquérito em 1952. Posto em disponibilidade sem salário trabalha como secretário de redação do jornal A Vanguarda, dirigido por Joel Silveira, durante o ano de 1953. Com o processo arquivado, é reintegrado à carreira diplomática no ano seguinte. Em 1956, a Editora José Olympio publica Duas águas, volume reunindo os poemas anteriores e os inéditos Morte e vida severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. Ganhador de vários prêmios e poeta dos mais importantes João Cabral é eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1969. A sua vivência em Barcelona e Sevilha, na Espanha, inspiraria muitos dos seus poemas, sobretudo pela semelhança que o poeta encontrava desta última cidade com o Recife, de que resulta Sevilha andando,em 1990,e a antologia Poemas sevilhanos,em 1992. Morre no Rio de Janeiro, como o último dos grandes poetas do Brasil contemporâneo, em 1999,tendo em Morte e vida Severina a sua obra mais divulgada, em poesia, em teatro e em música.

 

2. Uma Palavra Crítica

 

Marly de Oliveira, em estudo sobre a obra de João Cabral de Melo Neto, chama a atenção para o fato de que sua poesia não é simples ou fácil, nem procura iludir com a musicalidade dos versos como é tão comum na lírica brasileira. O motivo, diz ela, é que "esta é uma poesia anti-lírica, é uma poesia dirigida ao intelecto e, de certa forma, mais presa à realidade que o mesmo autor, que sempre teve por função de trabalho, cindidos, o pensar sobre a matéria do poema e o dia-a-dia de funcionário público, ocupado com negociações internacionais, independentes da coerência de sua visão do mundo”. Aceitamos a definição de poesia cerebral de João Cabral, embora haja necessidade de se discutirem as afirmações de Marly de Oliveira, pois a musicalidade nos versos de Cabral é decisiva, sobretudo, num poema como Morte e vida severina, e a sua poesia, apesar de seca e econômica, ainda assim mostra um lirismo agônico, que se não é o lirismo arrebatado dos românticos, não deixa de demonstrar sentimento e emoção. Atente-se para o que a crítica diz mais adiante, que confirma a nossa posição (os itálicos são nossos):

 

"Depois defeitos os estudos no Recife, a vinda para o Rio de Janeiro e o ingresso na vida diplomática, que o leva pelo mundo, é que tem a Necessária distância para ver melhor, com pungência e preocupação, a

verdadeira realidade de Pernambuco e do Nordeste em geral"

 

Poesia cerebral, pois. Poesia que procura refletir sobre o fazer poético, despojada de qualquer confessionalismo. É assim que Marly de Oliveira vê a produção do poeta, situada cronologicamente na chamada Geração de 45. A crítica não considera o seu primeiro livro – Pedra do sono- revolucionário, embora assumisse certas propostas doutrinárias do Modernismo, pela afinidade com a poesia de Carlos Drummond de Andrade e com Manuel Bandeira. Só a partir de Psicologia da composição, de 1947, surgiria com vigor "uma exaltação da secura, do deserto, da pedra: a estética do avesso e do não." Uma poesia que prefere o símile à metáfora. A sua procura de objetividade no poema, o leva à recusa de falar do amor, embora produza poema para a figura feminina, às vezes erótica, sob a ótica objetiva, criando imagens poucos convencionais para o leitor, como se pode ver em "Estudos para uma bailadora andaluza", em que surge a imagem insólita da bailarina fundida em cavaleira e égua, em heptassílabos de rimas toantes:

 

Subida ao dorso da dança,

(vai carregar ou a carrega?)

é impossível se dizer

se é cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dança

toda a energia retesa

e todo o nervo de quando

algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão

de quem vai montado em sela,

de quem monta um animal

e só a custo o debela,

como a tensão do animal

dominado sob a rédea,

que ressente ser mandado

e obedecendo protesta.

Então, como declarar

Se ela é égua ou cavaleira:

Há uma tal conformidade

Entre o que é animal e é ela,

Entre a parte que domina

e a parte que se rebela,

entre o que nela cavalga

e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer

de ambas, cavaleira e égua,

que são de uma mesma coisa

e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar

nenhuma linha fronteira

entre ela e a montaria:

ela é a égua e a cavaleira.

 

Em Pernambuco ou em Sevilha, a poesia de João Cabral de Meio Neto vai além do regionalismo, apesar das imagens recorrentes do mundo nordestino, do rio Capibaribe, da miséria do homem explorado. Sua poesia toma como base a luta do fazer poético, cortante como uma lâmina, seca como uma pedra, mas pujante e pungente como a vida severina.

 

3. Morte e vida severina: Vida e Miséria/ Ressurreição e Esperança

 

"é difícil defender,

só com palavras, a vida"

 

Morte e vida severina é um longo poema narrativo - poema para voz alta, como o chamou João Cabral de Melo Neto -, dividido em vários núcleos que se conjugam para tratar da viagem do retirante Severino, do Sertão até o Recife, sendo ele próprio o narrador, mesclando uma linguagem oralizada e coloquial a uma linguagem, por vezes, erudita. Na estruturação de seu poema,  João Cabral de Melo Neto utiliza preferencialmente o verso redondilho maior, de modo a tirar proveito do seu ritmo peculiar e popular, além das rimas toantes. A viagem feita pelo Capibaribe, no poema-livro O rio, é agora feita pelo sertanejo, fugido da seca de sua região, que tem o rio como guia, nos revelando uma ambientação que vai do sertão seco ao mangue, passando pela Zona da Mata pernambucana, apresentando os diversos matizes da miséria. Tentando uma síntese do personagem, podemos dizer que Severino é despersonalizado, produto do latifúndio e da falta de estrutura agrária, sujeito a morte prematura, sem identidade, emigra para tentar salvar-se, perde-se na busca da salvação, resignando-se com a morte, mas vê ressurgir a esperança de um dos mocambos do mangue do Recife. Obedecendo a esta trajetória, podemos dividir o poema nos seguintes núcleos:

 

1. Apresentação - Severino que em vossa presença emigra;

2. Primeiro encontro com a morte - Defunto embalado;

3. Segundo encontro com a morte Excelências para um defunto;

4. Terceiro encontro com a morte - A morte na janela;

5. Quarto encontro com a morte - Funeral para um lavrador;

6. Quinto encontro com a morte - A Hierarquia da morte;

7. Consciência da morte - Seguindo seu próprio enterro;

8. Resignação e resistência- O salto para fora da vida;

9. Anunciação - O salto para dentro da vida;

10. Esperança - Mãos que criam coisas.

 

3.1 Partes

 

1. Apresentação - Severino que em vossa presença emigra: Severino aparece despersonalizado, sem nome de família, e os nomes que ele vai apondo em lugar de torná-lo conhecido só acentua o seu anonimato. Nesse momento fica

bem clara a situação gerada pelo latifúndio patriarca!, dos coronéis donos das propriedades e dos seres, gerando filhos bastardos e miséria: são os Severinos de Maria do finado Zacarias, vivendo na serra da Costela, limites da Paraíba, "vivendo na mesma serra! magra e ossuda em que eu vivia". Na tentativa de definição nem a vida nem a morte diferenciam os Severinos, sem individualidade, que representam toda uma massa de explorados anônimos. Ao querer apresentar-se, Severino acaba revelando um modo de vida que leva à morte prematura, uma vida igual à morte - severina:

 

Somos muito Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos

iguais em tudo e na sina:

e de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

algum roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.

 

O discurso inicial de Severino vai revelando, apesar de sua fluência, a miséria de vida do sertanejo: fome, doença, morte prematura, trabalho exaustivo, violência, adversidade da região sem assistência levando ao êxodo rural. A relação com a terra é sofrida, compreendida como sina, destino, como se o homem fosse predestinado ao sofrimento. Severino não entende a sua situação, que é a de tantos outros, como uma questão social injusta, por causa de uma estrutura fundiária inexistente. Suar muito para "abrandar estas pedras" e "querer arrancar! algum roçado da cinza" define o exaustivo e inútil trabalho de lutar com uma terra esterilizada pelo homem. Embora Severino apresente a possibilidade da morte, sobretudo através do vocabulário - pedra, cinza, terra extinta -, esta só nos é revelada no segundo momento do poema.

 

2. Primeiro Encontro com a Morte - Defunto embalado: Em sua retirada,

Severino depara-se com dois homens carregando um defunto numa rede, "um

defunto de nada" (172), que perdeu a vida numa emboscada, para lhe tirarem a pouca terra que cultivava. A morte de um lavrador, que "já não lavra", desencadeia a discussão sobre a violência no campo. A metáfora da bala como ave, a "ave-bala", de destino certo e garantindo a "morte matada", porque "mais longe vara" (173), expõe a luta do latifúndio contra o pequeno agricultor. Nesse momento a metáfora passa a metonímia, com a "ave-bala" passando a designar o latifundiário, não mais a bala que matou o agricultor, metonímia reforçada pela espingarda, também tomada como o mandante do crime:

 

- E o que havia ele feito

irmãos das almas,

e o que havia ele feito

contra a tal pássara?

- Ter uns hectares de terra,

irmão das almas,

de pedra e areia lavada

que cultivava.

- Mas que roças que ele tinha,

irmãos das almas,

que podia ele plantar

na pedra avara?

- Nos magros lábios de areia,

irmão das almas,

dos intervalos das pedras,

plantava palha.

- E era grande sua lavoura,

irmãos das almas,

lavoura de muitas covas,

tão cobiçada?

- Tinha somente dez quadras,

irmão das almas,

todas nos ombros da serra,

nenhuma várzea.

- Mas então por que o mataram,

irmãos das almas,

mas então por que o mataram

com espingarda?

- Queria mais espalhar-se,

irmão das almas,

queria voar mais livre

essa ave-bala.

- E agora o que passará,

irmãos das almas, -

o que é que acontecerá

contra a espingarda?

- Mais campo tem para soltar,

irmão das almas,

tem mais onde fazer voar

as filhas-bala.”

 

Severino oferece ajuda aos carregadores do defunto, pois sua caminhada o fará passar pelo cemitério de Toritama, onde o defunto deverá ser enterrado. O defunto na rede parece embalado pelos carregadores, tanto quanto foi embalado pela pássara ave-bala.

 

3. Segundo Encontro com a Morte - Excelências para um Defunto: Severino

retirante vai seguindo o Capibaribe como seu guia, criando a metáfora das tantas

cidade por onde passa como se fossem as contas de um rosário, e a estrada a linha. Essa ladainha vai "até o mar onde termina" (176). Mas no rio Severino vê também a identidade com a sua vida miserável. O Capibaribe cortado pela estiagem o leva a uma encruzilhada cujo caminho ele desconhece:

 

Pensei que seguindo o rio

eu jamais me perderia:

ele é o caminho mais certo,

de todos o melhor guia.

Mas como segui-Ia agora

que interrompeu a descida?

Vejo que o Capibaribe,

como os rios lá de cima,

é tão pobre que nem sempre

pode cumprir sua sina

e no verão também corta,

com pernas que não caminham.

 

Escutando uma cantaria, Severino aproxima-se de uma casa e depara-se

com um grupo cantando excelências para um defunto. É de novo a morte em

seu caminho: um Severino encontra 2 mortes severinas de dois outros Severinos. As excelências vão sendo parodiadas por um homem do lado de fora do velório, revelando a privação dos Severinos na vida como na morte, levando apenas consigo "coisas de não:! fome, sede, privação", ou "coisas ocas, leves:/ como o caixão, que ainda deves" (177). Severino retirante começa a se desiludir: perdeu o rumo, buscava vida, só encontrado a morte pelo caminho. Pensa em interromper a viagem pelo caminho e procurar trabalho, até que a próxima invernada trace seu rumo no rio cheio:

 

Desde que estou retirando

só a morte vejo ativa,

só a morte deparei

e às vezes até festiva;

só morte tem encontrado

quem pensava encontrar vida,

e o pouco que não foi morte

foi de vida severina

(aquela vida que é menos

vivida que defendida,

e é ainda mais severina

para o homem que retira) .

 

4. Terceiro Encontro com a Morte - A Morte na Janela:  Severino dirige-se à

mulher na janela da casa, travando um diálogo bizarro. Ele, que sempre trabalhoupara ganhar e criar a vida, conversa com uma mulher cuja profissão é ajudar a morte. Este diálogo entre a vida e a morte é um dos pontos altos do poema. Severino respondendo às perguntas da mulher sobre sua ocupação vai desfiando um rosário de profissões, que não têm qualquer serventia para aquelas bandas - lavrador, vaqueiro, purgador de engenho. A terra sáfara e avara já não produz, nem os bancos querem financiar uma agricultura improdutiva; já não há pasto, e os bangüês foram substituídos pelas usinas. Severino diz algo que é conhecido da mulher da janela:

 

- Deseja mesmo saber

o que eu fazia por lá?

comer quando havia o quê

e, havendo ou não, trabalhar.

- Essa vida por aqui

é coisa familiar;

mas diga-me retirante,

sabe benditos rezar?

sabe cantar excelências,

defuntos encomendar?

sabe tirar ladainhas,

sabe mortos enterrar?

- Agora se me permite

minha vez de perguntar:

como a senhora, comadre,

pode manter o seu lar?

- Vou explicar rapidamente,

logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,

vivo de a morte ajudar. [...]

É, sim, uma profissão,

e a melhor de quantas há:

sou de toda a região

rezadora titular.

 

Depois de encontrar duas mortes, Severino encontra alguém que vive dela. A rezadora, carpideira e cantadora de excelências, alegoria da morte. O final do discurso da mulher é a dura revelação da consciência da morte e das

profissões que giram em torno dela:

 

- Como aqui a morte é tanta,

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Imagine que outra gente

de profissão similar,

farmacêuticos, coveiros,

doutor de anel no anular,

remando contra a corrente

,da gente que baixa ao mar,

retirante às avessas,

sobem do mar para cá.

Só os roçados da morte

compensam aqui cultivar,

e cultivá-las é fácil:

simples questão de plantar:

não se precisa de limpa,

de adubo nem de regar;

as estiagens e as pragas

fazem-nos mais prosperar;

e dão lucro imediato;

nem é preciso esperar

pela colheita: recebe-se

na hora mesma de semear. (181-182)

 

Esta passagem construída alegoricamente mostra a morte como um roçado de cultivo paradoxal: as estiagens são a irrigação, a limpeza são as pragas, o adubo é a própria semente, no caso o corpo. O resultado é uma colheita certa e imediata. E interessante comparar esta passagem ao poema" Alto do Trapuá" (Paisagens com figuras, 160-162),em que o homem do eito, o miserável explorado, em geral, é visto como espécie estranha e de difícil cultivo, embora se multiplique com facilidade. Em suma, se a vida é cultura difícil, a morte "não se

precisa de limpa, de adubar nem de regar" (182).

 

5. Quarto Encontro com a Morte- Funeral para um Lavrador: Severino chega às terras "femininas" da Zona da Mata. Na sua visão de retirante, ali está a terra da promissão, com água em abundância. Ele tem a ilusão da fartura e pensa que será fácil amansar aquela terra "branda e macia". Como ele não avista ninguém só cana, imagina não ser necessário tanto trabalho em terra tão fértil:

 

Mas não avisto ninguém,

só folhas de cana fina;

somente ali à distância

aquele bueiro de usina;

somente naquela várzea

um bangüê velho em ruína.

todas as horas do dia,

os dias todos do mês,

os meses todos da vida.

Por onde andará a gente

que tantas canas cultiva?

Feriando: que nesta terra

tão fácil, tão doce e rica,

não é preciso trabalhar

Decerto a gente daqui

Jamais envelhece aos trinta

nem sabe da morte em vida,

vida em morte, severina;

e aquele cemitério ali

branco na verde colina,

decerto pouco funciona

e poucas covas aninha. (183)

 

Nessa ilusão de fartura, em meio ao canavial, Severino assiste ao enterro de um lavrador, num dos momentos mais conhecidos do poema, uma página de ironia extrema, que revela a violência decorrente dos conflitos da terra, mostrando a necessidade da reforma agrária. Do latifúndio, a única terra a que o trabalhador tem direito é a sua sepultura. Musicado por Chico Buarque de

Holanda, o trecho abaixo torna-se hino da esquerda no Brasil:

 

- Essa cova em que estás,

com palmos medida,

é a conta menor

que tiraste em vida.

- É de bom tamanho,

nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe

deste latifúndio.

- Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.

- É uma cova grande

para teu pouco defunto,

mas estarás mais ancho

que estavas no mundo.

- E uma cova grande

para teu defunto parco,

porém mais que no mundo

te sentirás largo.

- É uma cova grande

para tua carne pouca,

mas a terra dada

não se abre a boca. (183-184)

 

Ironicamente, como proprietário dessa terra, o lavrador será "senhor, homem do eito e trator", além de "semente, adubo, colheita" (184). Nesse novo

encontro com a morte, vê-se o retorno da metáfora da morte como semeadura,

do defunto como semente e da cova como leirão. A terra abriga e veste o trabalhador com o brim do Nordeste, numa alusão aos enterros em rede. Nu como a semente o corpo toma a sepultura a um só tempo como coberta a mulher:

 

- Despido vieste no caixão,

despido também se enterra o grão.

- De tanto te despiu a privação

que escapou de teu peito a viração.

- Tanta coisa despiste em vida

que fugiu de teu peito a brisa.

- E agora, se abre o chão e te abriga,

lençol que não tiveste em vida.

- Se abre o chão e te fecha,

dando-te agora cama e coberta.

- Se abre o chão e te envolve,

como mulher com quem se dorme. (186)

o verbo despir aparece metaforicamente como privação, negação, ausência,

que só será suprida pela morte. Na vida tudo falta, na morte tudo sobra.

Severino fez a sua retirada para poder viver um pouco mais, no entanto, ele

toma consciência de que a miséria na caatinga ou na Zona da Mata é a mesma,

a diferença está na morte em terra "por aqui mais macia":

Está apenas no pavio,

ou melhor, na lamparina:

pois é igualo querosene

que em toda parte ilumina,

e quer nesta terra gorda

quer na serra, de caliça,

a vida arde sempre com

a mesma chama mortiça. (187)

 

6. Quinto Encontro coma Morte - A Hierarquia da Morte: Severino chega ao Recife, fim de sua viagem, e ainda assim encontra a morte na conversa de dois coveiros. Os dois coveiros estabelecem hierarquias para a morte. A cidade rica tem menos mortes, a cidade pobre tem mais mortes. Para designar as quantidades, surgem as metáforas da cidade rica como um porto e as mortes aparecendo em um único transatlântico por dia; já os bairros pobres são como estações de trens aonde chegam diversos comboios diários..os bairros ainda mais pobres, como Casa Amarela, são vistos como paradas de ônibus, "com filas de mais de cem" (188). Um dos coveiros sintetiza a vida dos retirantes, que na sua visão deveriam ser enterrados no rio, "mortalha e macio caixão d'água", levando até o mar:

 

- E esse povo lá de riba

de Pernambuco, da Paraíba,

que vem buscar no Recife

poder morrer de velhice,

encontra só, aqui chegando

cemitérios esperando.

- Não é viagem o que fazem,

vindo por essa caatingas, vargens;

aí está o seu erro:

vêm é seguindo seu próprio enterro. (191)

 

7. Consciência da morte - Seguindo seu próprio enterro: A consciência da

morte fica mais forte quando o retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe: não estivera retirando, mas seguindo seu próprio enterro. Severino decide, então, apressar a morte, pois "o morto ainda está com vida" (192):

 

A solução é apressar

a morte a que se decida

e pedir a este rio,

que vem também lá de cima,

que me faça aquele enterro

que o coveiro descrevia:

caixão macio de lama,

Mortalha macia e líquida,

Coroas de baronesa

Junto com flores de aninga,

e aquele acompanhamento

de água que sempre desfila

(que o rio, aqui no Recife,

não seca, vai toda a vida). (192-193)

 

8. Resignação e resistência - O salto para fora da vida: Severino aproxima-se dos mocambos no mangue e inicia um diálogo com o mestre carpina José sobre o rio, a fome e a miséria. Para cruzar o rio, diz José carpina, usa-se a ponte e a fome se cruza quando se come, embora a miséria seja um "mar largo" (193). A miséria aparece também como mar a ser combatido, com a vida que se compra a cada dia, a retalho. Severino, desesperança do, não acredita na resistência à vida do mestre carpina e mostra-se resignado, desejando "saltar, numa noite / fora da ponte e da vida" (194 ):

 

- Seu José, mestre carpina,

e quando é fundo o perau?

quando a força que morreu

nem tem onde se enterrar,

por que ao puxão das águas

não é melhor se entregar?

- Severino, retirante

o mar de nossa conversa

precisa ser combatido,

sempre de qualquer maneira,

porque senão ele alaga

e devasta a terra inteira.

- Seu José, mestre carpina

e em que nos faz diferença

que como frieira se alastre,

ou como rio na cheia,

se acabamos naufragados

num braço do mar miséria? (194)

- Seu mestre, José carpina,

e que interesse, me diga,

há nessa vida a retalho

que é cada dia adquirida?

espera poder um dia

comprá-la em grandes partidas?

- Severino, retirante,

não sei bem o que lhe diga:

não é que espere comprar

em grosso de tais partidas,

mas o que compro a retalho

é, de qualquer forma, a vida.

- Seu José, mestre carpina,

que diferença faria

se em vez de continuar

tomasse melhor saída:

a de saltar, numa noite,

fora da ponte e da vida? (195)

José carpina (carpinteiro) de Nazaré da Mata acredita na vida e é

exatamente o nascimento de seu filho que alimentará esta esperança.

 

9. Anunciação- O salto para dentro da vida: É neste momento da anunciação

do nascimento do filho do mestre carpina, que o poema se define como um auto de natal (nascimento). É a esperança que surge, nasce o filho que salta para dentro da vida. A aproximação com o nascimento de Cristo é evidente: o pai é carpinteiro pobre, chama-se José e é de Nazaré... da Mata, e o filho nasce para trazer esperança a todos. A chegada deste Jesus da lama extingue o mau cheiro da maré, trazendo o cheiro desinfetante de alfazema dos sargaços que corre pelas ruas; o vento seco enxuga a umidade do lamaçal; cantam-se louvores no céu e na terra; os maruins não se apresentam, não faltando sequer a estrela da anunciação, pois "este rio de água cega,/ ou baça, de comer terra,/ que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas" (196).

As oferendas são trazidas: caranguejos, leites, papel de jornal, água da bica do rosário, canário, bolacha d'água, boneco de barro, cachaça, abacaxi, ostras, rolete de cana, tamarindo, jaca, mangabas, cajus, peixe, boi, siris, mangas e goiamuns. As ciganas lêem a sua sorte. Uma prevê miséria anfíbia na lama; a outra, esperança como operário:

 

- Cedo aprenderá a caçar:

primeiro, com as galinhas,

que é catando pelo chão

tudo o que cheira a comida;

depois, aprenderá com

outras espécies de bichos:

com porcos nos monturos,

com os cachorros no lixo.

Vejo-o, uns anos mais tarde,

na ilha do Maruim,

vestido negro de lama,

voltara de pescar siris;

e vejo-o, ainda maior,

pelo imenso lamarão

fazendo dos dedos iscas

para pescar camarão. (198)

- Não o vejo dentro dos mangues,

vejo-o dentro de uma fábrica:

se está negro não é de lama,

é graxa de sua máquina,

coisa mais limpa que a lama

do pescador de maré

que vemos aqui, vestido

de lama da cara ao pé.

E mais: para que não pensem

que em sua vida tudo é triste,

vejo coisa que o trabalho

talvez até lhe conquiste:

que é mudar-se destes mangues

daqui do Capibaribe

para um mocambo melhor

nos mangues do Beberibe. (199)

o menino é magro, mas tem peso de homem, numa alusão à magreza

miserável dos habitantes dos mangues. Nele, no entanto, reside a beleza da

esperança de mudança:

- Belo porque tem do novo

a surpresa e a alegria.

- Belo como a coisa nova

na prateleira até então vazia.

- Como qualquer coisa nova

inaugurando o seu dia.

- Ou como o caderno novo

quando a gente o principia.

- E belo porque com o novo

todo o velho contagia.

- Belo porque corrompe

com sangue novo a anemia.

- Infecciona a miséria

com vida nova e sadia.

- Com oásis, o deserto,

com ventos acalmaria. (201)

 

10. Esperança - Mãos que criam coisas: Seu José, mestre carpina, dá finalmente a resposta a Severino retirante. Mesmo sabendo o quanto "é difícil defender,/ só com palavras, a vida", é preciso ter fé na vida, ainda que seja uma vida severina:

 

Severino retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga;

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, severina;

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-Ia brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina. (201-202)

O poema é construí do em contraste (antíteses, paradoxos, ironias), revelando

a vida sofrida do homem, frente à miséria da exploração, mesmo onde

existe a fartura. O final é a celebração da fé na vida, procurando mostrar como

é preciso lutar para poder transformar a vida. A explosão da vida é sempre

maior que a morte, e mesmo uma vida severina ajudará a criar uma vida melhor.

 

4. Exercícios

 

01.Identifique as figuras abaixo:

 

(a) “só a morte tem encontrado quem pensava encontrar a vida."

 

(b) “Nos magros lábios de areia/irmão das alma / dos intervalos das pedras,/ plantava palha."

 

c) "que é o melhor lençol dos mortos / noite fechada"

 

d) "mas então porque o mataram/com espingarda![...]o que é que acontecerá!

Contra a espingarda?

 

e) "E não precisava dinheiro,/ e não precisava coveiro,e/ não precisava oração,e/ não precisava inscrição."

 

f) "que sempre pás e enxadas / foices de corte e capina,/ ferros de cova,estrovengas/ o meu braço esperariam.”

 

Mas não senti diferença

Entre o Agreste e a Caatinga,

e entre a Caatinga e aqui a Mata

a diferença é a mais mínima.

Está apenas em que a terra

É por aqui mais macia;

 

02.A partir da leitura da estrofe acima,qual é a constatação de Severino retirante, após tanta caminhada?

 

Sim,o melhor é apressar

o fim desta ladainha,

fim do rosário de nomes

que a linha do rio enfia;

é chegar logo a o Recife,

derradeira ave-maria

do rosário,derradeira

invocação da ladainha,

Recife, onde o rio some

E esta minha viagem se fina.

 

03.Explique as metáforas: ladainha,rosário de nomes, derradeira ave-maria.

 

04.Porque o rio some no Recife?

 

e quer nesta terra gorda

quer na serra,de caliça,

a vida arde sempre com

a mesma chama mortiça.

 

05. O que representa a terra gorda? E a serra de caliça?

 

06.Como se explica a metáfora da vida sempre ardendo com a mesma chama mortiça'!?

 

 

Aqui ao menos há mais gente

Para atender a freguesia,

Para botar a caixa cheia

Dentro da caixa vazia.

07.Explique o que um dos coveiros cuja conversa Severino escuta, quis dizer com os versos acima.

 

 

"Seu José, mestre carpina,/

e quando ponte não há?

quando os vazios da fome!

Não se tem com que cruzar?

quando esses rios sem água!

são grandes braços de mar?

"Severino,retirante

o meu amigo é bem moço;

sei que a miséria é mar largo,

não é como qualquer poço:

mas sei que para cruzá-la

vale bem qualquer esforço."

 

08. Explique a linguagem figurada existente nos versos acima.

 

09.Que paralelo poderíamos traçar entre Morte e vida Severina e A bagaceira?

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