domingo, 22 de junho de 2014

Literatura - 2º ano




ROMANTISMO

1. DEFINIÇÃO: O Romantismo foi o primeiro movimento literário brasileira da Era Nacional. Teve suas origens no final do século XVIII, na Alemanha e Inglaterra. Na Alemanha, o movimento pré-Romântico, Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), de acentuado caráter nacionalista, desencadeou  o Romantismo. Goethe, com o seu Werther, romance que conta os sofrimentos amorosos de um jovem e seu suicídio, foi responsável por uma onda européia de emotividade e imitações.
Na Inglaterra, Sir Walter Scott escrever romances históricos, uma tendência fundamental no Romantismo, e Lord Byron é a expressão do ideal romântico: o poeta como libertador dos povos, pois, além de escrever poesia ultrarromântica, participou das lutas pela independência da Grécia.
Mas foi na França a responsável pela divulgação das novas idéias, influenciadas, em grande parte, pela teoria do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau, segundo a qual o homem nasce bom, mas a sociedade civilizada o corrompe.

2. CONTEXTO-HISTÓRICO:
a) na Europa:
à  Triunfo da burguesia;
à  Liberalismo econômico.

b) no Brasil:
à Independência;
à Primeiro reinado;
à Abdicação;
à Regência;
à Segundo reinado;
à Revoltas internas;
à Guerra do Paraguai;
à Abolição;
à Proclamação da República.

3. CARACTERÍSTICAS:

à individualismo;
à subjetivismo;
à fuga da realidade através do sonho, da morte, da natureza (indianismo) e do tempo;
à sentimentalismo;
à supervalorização do amor

4. DURAÇÃO (DIDÁTICA):

à 1836: publicação do livro Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães.
à 1881: início do Realismo.

5. PRODUÇÃO LITERÁRIA
5.1 – Poesia:
1ª geração: Nacionalista ou Indianista
Destaques: Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias

2ª Geração: Byroniana, Ultrarromântica ou Mal-do-século
Destaques: Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu.

3ª geração: Condoreira ou Hugoana
Destaques: Castro Álvares, Sousândrade.

5.2 – Prosa:

a) Romances urbanos;
b) Romances Indianistas;
c) Romances Históricos;
d) Romances rurais;
e) Romances regionais.

Destaques: Joaquim Manuel de Macêdo, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Visconde Taunay, Franklin Távora, Manuel Antônio de Almeida.

5.3 - Teatro:
à Gênero dramático:
a) Comédias de costumes

Destaques: Martins Pena.

6. QUADRO COMPARATIVO

ARCADISMO
ROMANTISMO
Razão
Emoção
Convenções
Liberdade de criação
Universalismo
Nacionalismo
Mitologia pagã
Religiosidade cristã
Linguagem erudita
Linguagem popular


7. EXERCÍCIOS

1. I. Preferência pela realidade exterior sobre a interior.
II. Anteposição da fé à razão, com valorização da mística e da intuição.
III. Poesia descritiva de representação dos fenômenos da natureza. Detalhismo.
IV. Gosto pelo pitoresco, pela descrição de ambientes exóticos.
V. Atenção do escritor aos detalhes para retratar fielmente o que descreve.
Características gerais do Romantismo se acham expressas nas proposições:
II e IV
II e III
I e IV
II e V 

2. Não é próprio do Romantismo:
Explorar assuntos nacionais como história, tradições, folclore; 
Idealizar a mulher, tornando-a perfeita em todos os sentidos; 
Explorar assuntos ligados à antigüidade clássica, imitando-lhe os poetas e prosadores; 
Valorizar temas fúnebres e soturnos. 

3. De acordo com a posição romântica, é correto afirmar que:
A natureza é expressiva no Romantismo e decorativa no Arcadismo. 
Com a liberdade criadora implantada no Romantismo, as regras fixas do Classicismo caem e "o poema começa onde começa a inspiração e termina onde termina esta". 
A visão do mundo romântica é centrada no sujeito, no "eu" do escritor, daí a predominância da função emotiva na linguagem do Romantismo. 
Todas as alternativas anteriores estão corretas. 

4. Poderíamos sintetizar uma das características do Romantismo pela seguinte aproximação de opostos:
Cultivando o passado, procurou formas de compreender e explicar o presente. 
Pregando a liberdade formal, manteve-se preso aos modelos legados pelos clássicos. 
Embora marcado por tendências liberais, opôs-se ao nacionalismo político. 
Voltado para temas nacionalistas, desinteressou-se do elemento exótico, considerando-o incompatível com exaltação da pátria. 
5. A visão do mundo, nostálgica nos românticos, explica-se:
Pelas inúmeras guerras havidas na época do Romantismo. 
Pela inadaptação aos valores absolutistas implantados pela monarquia brasileira. 
Pelo descontentamento da nobreza, que deixa o poder, e de parte da burguesia, que ainda não havia assumido ou que tivesse ficado à margem dele. 
Pela contemplação de um Brasil conservador, baseado no latifúndio, no escravismo e na monarquia. 
6. "Deus! Oh, Deus! Onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrelas tu t'escondes Embuçado no céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, senhor Deus?..."
Esta é a primeira estrofe de um poema que é exemplo de:
Lirismo subjetivo, marcado pelo desespero do pecador arrependido. 
Lirismo religioso, exprimindo o anseio da alma humana em procura da divindade. 
Lirismo romântico de tema político-social, exprimindo o anseio do homem pela liberdade. 
Romantismo nacionalista repassado da saudade que atormenta o poeta do exílio. 
7. Assinale a alternativa que traz apenas características do Romantismo:
idealismo, religiosidade, objetividade, escapismo, temas pagãos. 
predomínio do sentimento, liberdade criadora, temas cristãos, natureza convencional, valores absolutos. 
egocentrismo, predomínio da poesia lírica, relativismo, insatisfação, idealismo. 
idealismo, insatisfação, escapismo, natureza convencional, objetividade. 
8. UM ÍNDIO
    "um índio descerá de uma estrela colorida brilhante
    de uma estrela que virá numa velocidade estonteante
    e pousará no coração do hemisfério sul na américa
    num claro instante
    (...)
    virá
    impávido que nem muhammad ali
    virá que eu vi
    apaixonadamente como peri
    virá que eu vi
    tranqüilo e infalível como bruce lee
    virá que eu vi
    o aché do afoxé filhos de ghandi virá"
    (Caetano Veloso)
O trecho anterior mostra, com uma visão contemporânea, determinado tipo de tratamento dado ao índio brasileiro em certo período de nossa literatura. Assinale a alternativa em que aparecem os nomes de dois autores que manifestaram tal tendência.
Gonçalves de Magalhães e Álvares de Azevedo 
Castro Alves e Tobias Barreto 
Fagundes Varella e Visconde de Taunay 
Gonçalves Dias e José de Alencar. 
9. "A verdadeira poesia deve inspirar-se num entusiasmo natural e exprimir-se com naturalidade, sendo simples, pastoril, bucolicamente ingênua e inocente."
Esta afirmação caracteriza a estética __________ uma vez que exalta elementos ligados à _________, opondo-se ao culto do interior que identifica o ___________.
As lacunas acima deverão ser preenchidas, respectivamente, com os termos:
romântica, natureza, Simbolismo 
árcade, civilização, Romantismo 
parnasiana, estética, Arcadismo 
árcade, natureza, Romantismo 
10. Machado de Assis representa a transição entre:
Arcadismo e Romantismo 
Barroco e Romantismo 
Romantismo e Realismo 
Parnasianismo e Simbolismo 
11. "Quantas coisas (...) brotam ainda hoje, modas, bailes, livros, painéis, primores de toda casta, que amanhã já são pó ou cisco? Em um tempo em que não mais se pode ler, pois o ímpeto da vida mal consente folhear o livro, que à noite deixou de ser novidade e caiu na voga; no meio desse turbilhão que nos arrasta, que vinha fazer uma obra séria e refletida? Perca pois a crítica esse costume em que está de exigir, em cada romance que lhe dão, um poema."
As proposições anteriores, de José de Alencar, fazem alusão a um problema característico do movimento romântico. Aponte-o:
o movimento romântico, afeito ao lirismo e á sentimentalidade, busca realizar uma prosa fundamentalmente impregnada de valores poéticos 
o autor preocupa-se com satisfazer o gosto de um público pouco exigente no que diz respeito a obras de acabamento literário mais sofisticado 
tendo em vista a caracterização da sociedade burguesa, o romance deve conter preferencialmente ação, que seja o retrato dos agitados tempos modernos 
o autor, já que se reconhece gênio, e pelo público, é aceito como tal e deve nortear as multidões que o lêem com sua palavra sábia e simples 
O texto seguinte refere-se às questões 12 e 13.
"O problema da nacionalidade literária foi colocado, dentro da atmosfera do Romantismo, em termos essencialmente políticos. Misturadas literatura e política, a autonomia política transferia-se para literatura, e confundiram-se independência política e independência literária."
12. Segundo o texto, para os românticos:
a autonomia política e a autonomia literária foram duas faces de um mesmo processo de emancipação 
autonomia política e autonomia literária mantiveram entre si uma relação de causa e efeito 
a autonomia literária sempre se seguiu à emancipação política 
emancipação política e emancipação literária foram processos que se concretizaram independentemente um do outro 
13. Segundo o texto:
Romantismo foi uma escola literária de atmosfera essencialmente política 
no Romantismo, literatura e política interpenetram-se e exercem influência mútua, numa interdependência dialética 
pode-se dizer que a política usou a literatura em suas campanhas, mas o inverso não é válido, pois a literatura não se valeu da política 
independência política e independência literária são fenômenos distintos, que só se misturam em conseqüência de um erro de interpretação 
14. A proposta de divisão dos romances alencarianos baseia-se num critério:
cronológico 
temático 
estilístico 
geográfico 
15. Assinale o poema de Gonçalves Dias que não apresenta a temática indianista:
Ainda uma vez - Adeus 
I-Juca Pirama 
Marabá 
Leito de Folhas Verdes 
16. O lirismo social da poesia de Castro Alves:
tematiza a liberdade dentro, principalmente, de um enfoque individualista 
tematiza a liberdade exclusivamente referenciada ao negro escravizado 
tematiza a liberdade tanto com um enfoque individualista como coletivo; e, em especial, referenciada ao negro escravizado 
tematizava a liberdade de modo geral, e apenas acidentalmente referenciada ao negro escravizado 
17. Poema castro-alivino que não aborda a temática social:
O Livro e a América 
Vozes d’África 
Ode ao Dous de Julho 
n.d.a 
18. Qual a alternativa que apresenta grupos de classificação dos romances alencarianos?
urbanos, indianistas, históricos e regionalistas 
urbanos, indianistas, históricos e psicológicos 
urbanos, indianistas, psicológicos e satíricos
urbanos, históricos, psicológicos e trágicos
 
19. Assinale a alternativa falsa. O Romantismo:
procura o elemento nacional
propõe ruptura com o passado
foi introduzido no Brasil por Gonçalves de Magalhães
é a valorização do que é "nosso" 


REALISMO/NATURALISMO/ PARNASIANISMO

1. DEFINIÇÃO: O Realismo e o Naturalismo, surgidos como reações ao sentimentalismo romântico iniciaram-se em 1881, respectivamente, com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O Mulato, de Aluísio de Azevedo; manifestações poéticas do Parnasianismo já se faziam sentir desde 1870. Assinala-se o ano de 1893 como início do Simbolismo e final, portanto, do Realismo. No entanto, essa data é puramente didática, uma vez que, até as duas primeiras décadas desde século, é possível encontrar produções orientadas por todas essas estéticas.

2. CONTEXTO HISTÓRICO:

à Segunda Revolução Industrial;
à Cientificismo: Socialismo científico
                         Positivismo
                         Evolucionismo
                         Determinismo
à Conseqüências da guerra do Paraguai;
à Libertação dos escravos;
à Fim da Monarquia e proclamação da República;
à Imigração

3. CARACTERÍSTICAS:

à objetividade;
à predomínio da razão;
à observação, análise e denúncia dos males sociais;
à criação dos romances de análise (Realismo);
à aceitação de determinismos científicos (Naturalismo);

4. PRODUÇÃO LITERÁRIA:

a) Realismo: Machado de Assis, Raul Pompéia.
b) Naturalismo: Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa, Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha, Domingos Olímpio.
c) Parnasianismo: Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Olavo Bilac.

5. QUADROS COMPARATIVOS

QUADRO 1

ROMANTISMO
REALISMO/NATURALISMO
Subjetivismo
Objetivismo
Sentimentalismo
Materialismo, racionalismo
Imaginação
Observação da realidade
Volta ao passado
Momento presente
Individualismo
universalismo

PARNASIANISMO
Racionalismo
Objetivismo
Impessoalidade
Perfeição formal


QUADRO 2

REALISMO
INTERSECÇÃO
NATURALISMO
Análise psicológica
Influência do Positivismo e Determinismo
Análise social
Romance documental
Anticlericais
Antiburgueses
Antimonárquicos
Anti-românticos
Romance científico, experimental
Expressões indiretas
Retarto real
Expressão direta

6. ANÁLISE DOS LIVROS DO PSS II

6.1 - Os melhores contos, de Machado de Assis

Dizem os críticos que Machado de Assis era "urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro lugar.  
A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação psicológica. ... Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando desenvolveu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos."
Esta obra, Os Melhores contos de Machado de Assis, é uma seleção dos melhores contos do autor e corresponde ao que de melhor se escreveu no gênero, em língua portuguesa. Maior escritor brasileiro, romancista cheio de artes e artimanhas, mestre da dubiedade, dando a entender, muitas vezes, o contrário do que quis dizer, conhecedor profundo da alma humana, o bruxo do Cosme Velho encontrou no conto um esplêndido terreno para as suas bruxarias.
Em quase meio século de atividade no gênero, Machado deixou 205 contos, entre os quais dezenas de obras-primas, das melhores escritas em qualquer época e país, que o colocam como uma espécie de pico solitário da literatura universal.
Na obra, temos exemplos de narrativas em que a “atmosfera” do diálogo é predominante e de narrativas em que o enredo, marcado pela causalidade, define a arquitetura do conto. Os diversos narradores, ora em terceira pessoa, ora protagonistas, ora participantes secundários, tendem, quase sempre, a emitir opiniões e a se imiscuir no narrado. As personagens, mesmo as de menor relevo na narrativa, têm sempre em si certa ambiguidade própria do humano e que se constitui uma das características mais expressivas da visão machadiana do mundo.
A atualidade das narrativas decorre, dentre outros fatores, da multissignificação semântica que emerge do testemunho do escritor sobre a realidade do seu tempo e que aborda o pathos do homem em todos os tempos. O autor consegue, através da simulação do particular, atingir dimensões de universalidade: suas personagens ultrapassam os próprios limites individuais, para se converterem em metonímias do homem ocidental.
Dirigir-se eventualmente a um leitor hipotético, nomeando-o e qualificando-o, é uma das estratégias dos narradores dos contos de Machado. A técnica composicional dos contos tem correspondência com a complexidade da alma humana que emerge das narrativas. Menções, alusões e evocações de grandes autores da literatura universal permeiam as narrativas, cujo cronotopo mais constante é o do Rio de Janeiro do Século XIX.
No início de sua carreira, o escritor não deu muita importância ao gênero. O primeiro conto, publicado aos 19 anos, chamava-se Três Tesouros Perdidos, e o segundo, O País das Quimeras só saiu três anos depois (em 1862).
O exercício constante e persistente do gênero só se realiza após 1864. Convidado a colaborar no Jornal das Famílias, as suas histórias agradam tanto as leitoras que cada número publica dois ou três trabalhos seus, obrigando-o a utilizar diversos pseudônimos.
Os contos mais significativos de Machado de Assis, considerado por muitos um dos mais importantes autores brasileiros, estão compilados nesta obra.
O pleno domínio do gênero coincide com a grande crise de sua vida, no final da década de 1870, levando-o à descrença, ao pessimismo e ao temor da loucura. É a época das Memórias Póstumas de Brás Cubas e dos contos de Papéis Avulsos (1882), marcados pela inquietação diante da condição humana, amargos, irônicos, sarcásticos, críticos impiedosos do bicho homem, cheios de situações ambíguas, quando nada acontece, mas palpita uma riquíssima carga de humanidade.
Obras-primas do quilate de Missa do Galo, Uns Braços, Dona Benedita, Pai contra mãe, Cantiga de Esponsais, O Alienista e outros, onde a dificuldade é escolher o melhor do que, por sua condição, já figura entre o melhor dos melhores.

6.1.1 – RESUMO

Grupo I – Explorando a alma feminina
             Hábil observador da psicologia feminina, Machado aponta-lhes as graças, as incertezas, os desencantos, as aspirações, os amores... Tendo como cenários os salões em que conviviam os elementos das camadas mais privilegiadas, o escritor consegue reconstruir o modo de vida, os arranjos casamenteiros, os casos de adultério e o cotidiano dessa gente, com recursos das crônicas de costumes do século XIX. Entre os contos que compõem esse grupo têm-se: 
·        A Cartomante 
Narrado em terceira pessoa, traz o relato de um caso de adultério, envolvendo a bela Rita, seu marido Vilela e seu amante Camilo, um amigo de infância de seu marido. Camilo recebe uma carta anônima, informando-lhe que seu relacionamento com Rita já é conhecido de todos. Isto o leva a não mais freqüentar a casa do amigo, fato que faz Rita ficar temerosa de que Camilo não mais a amava. Consulta uma cartomante, que a tranqüiliza, afirmando serem infundados seus temores. Quando os dois voltam a se encontrar, Rita lhe conta a visita à cartomante; Camilo ri de sua ingenuidade, diz-lhe que seria melhor consultar a ele do que a cartomante. 
Certo dia, Camilo recebe um recado de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Camilo fica temeroso e indeciso; porém, não ir apenas confirmaria as suspeitas de Vilela, caso este tivesse recebido alguma denúncia. Resolve ir; quando passa em frente à casa da cartomante, pára e faz uma consulta. A cartomante lhe assegura que nada aconteceria, nada devia temer, pois o marido ignorava tudo. 
Agora, mais tranqüilo e confiante, chega à casa de Vilela e pergunta-lhe qual o motivo do recado: “Vilela não lhe respondeu: tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão”. 
·        A Desejada das Gentes 
Partindo de uma conversa, o narrador-personagem, homem já de cabelos grisalhos, rememora um caso de amor com uma certa Quitília, mulher de cerca de trinta anos, que jamais abriu seu coração a qualquer um de seus inúmeros pretendentes, inclusive o narrador, porque tinha verdadeira aversão ao casamento. As excentricidades dessa mulher, no entanto, não deixam de revelar a existência de um verdadeiro amor pelo narrador, tanto que eles se casam no último momento da vida dela, sem que houvessem partilhado o leito nupcial. 
·        Trio em Lá Menor 
Narrado em terceira pessoa, o conto segue o andamento musical, dividido em quatro movimentos: adágio cantabile, allegro ma non troppo, allegro apassionato e minueto. Em busca do verdadeiro amor, Maria Regina não consegue decidir-se entre um e outro de seus dois pretendentes. Maciel, homem frívolo, conhecedor profundo do que a sociedade oferecia para as boas e más línguas e que, principalmente, não tardava a espalhar os fatos. Maciel era um moço de seus vinte e sete anos. Do outro lado está Miranda, entrando nos cinqüenta, de fisionomia dura, homem sério com seus encantos e enfados. A moça não conseguia decidir-se por nenhum deles, com a particularidade de, na presença de um, ter a imaginação constantemente voando para as qualidades do outro e vice-versa, e, assim, ambos se completavam. Na sua busca pela perfeição, Maria Regina é condenada a ficar sem nenhum deles. 
·        Mariana 
Tendo como motivo um caso de amor, o narrador em terceira pessoa relata a volta de Evaristo para o Rio de Janeiro, após dezoito anos na Europa, para onde partira depois do fim de seu caso amoroso com Mariana. Ao retornar, volta ao mesmo lugar onde anos atrás era correspondido em seu amor por essa mulher, casada com Xavier. Na mesma sala, sob um retrato em que ela estava representada com vinte anos, Evaristo sente reviver o amor, envolve-se no passado comovente, como se os tempos se irmanassem. No passado, ela casa, ele o amante que convivia com a dúvida de se saber amado ou não, Xavier o marido; no presente, Xavier à beira da morte, o retrato da sala revivendo o passado e a mulher, indiferente. Após a morte de Xavier, Evaristo tenta se encontrar com Mariana, mas ela não se deixa alcançar. Mariana é um caso de relacionamento: amou o marido sinceramente, amou Evaristo também sinceramente, a ponto de quase cometer suicídio por ele e, no final da vida, dedicou-se sinceramente ao marido morto. Evaristo retorna à Europa a tempo de assistir a um espetáculo teatral que, por sinal, foi um fracasso, na mesma medida que seu caso de amor. Só lhe restou a vida fútil. 
·        D. Paula 
D. Paula é um senhora viúva que mora no alto da Tijuca e raramente sai de casa. A razão de estar na casa da sobrinha no início do conto é para tentar salvar o casamento da moça. Venancinha, a sobrinha, brigou muito feio com o marido devido ao ciúme dele, porque o marido a julga apaixonada por outro homem. Realmente, Venancinha estava sendo cortejada por Vasco Maria Portela, filho de um mesmo Vasco que outrora havia cortejado a tia. Forçando uma confissão, D. Paula vai revivendo o passado. Na medida em que flui o relato da sobrinha, o leitor vai conhecendo a solidão amargurada da protagonista, que salvou sua sobrinha do mesmo tipo de vida. 
Grupo II – Os labirintos da mente 
            Os contos selecionados para ilustrar esse aspecto ressaltam estudos do caráter humano. O escritor penetra analiticamente nos meandros da mente humana, procurando ressaltar-lhes o inusitado da personalidade, casos com a avareza, o sadismo, a busca pela perfeição, o aprendizado do vício, a revisão de valores. Com a fluidez daqueles que conseguem conhecer os mais profundos labirintos da alma humana, Machado conduz em linguagem clara e precisa alguns de seus melhores contos de captação de atmosfera. Nesse grupo estão: 
·        Uns Braços 
Por meio de um episódio doméstico, é revolvido o insólito de uma situação, misto de mistério, sensualidade e insinuação. Ressalta do adolescente Inácio o desejo voltado para o sensual, quando esse aprendiz de quinze anos iniciava-se no ofício de agente ou de escrevente do solicitador Borges, na casa do qual vive. Ao querer escapar à sedução da mulher de Borges, atraído principalmente pelos braços roliços da moça, refugia-se na volúpia de um sonho e sente-se envolvido pelos braços da mulher, D. Severina, elemento de sua obsessão. Ao deslocar o eixo da narrativa de Inácio para D. Severina, o narrador faz coincidir devaneio e realidade. A mulher contempla o rapaz adormecido e, talvez por se ter pressentido nos sonhos do rapaz, aproxima-se dele e o envolve. O sonho coincide com a realidade e o sonhado e a realidade coexistem no beijo selado: real (de D. Severina em Inácio) e sonhado (de Inácio em D. Severina). O beijo constitui-se concomitantemente em um devaneio e um tempo real e se torna a lembrança mais concreta do episódio, no entanto, insólita porque o tempo transcorreu e as lembranças confundem-se. 
·        Um Homem Célebre 
Pestana é um compositor de polcas, famoso e popular. Assim que acaba de compor uma melodia, todos começam a cantá-la ou entoá-la. Era um verdadeiro gênio, a inspiração caía-lhe solta, sentava-se ao piano, depois de algumas poucas notas, mais uma polca era composta e era só levá-la ao editor, colocar algumas rimas e o sucesso estava garantido. Nos primeiros anos gostava deveras de suas composições, mas com o passar do tempo seu esmerado senso crítico vinha à tona, ficava vexado, enfastiado, tinha náuseas, verdadeira aversão por polcas. Sua intenção era compor uma música que tivesse o veio clássico, inspirada em Beethoven, Gluck, Bach, Shumann e outros, mas as notas vinham uma a uma e sempre saíam polcas. Casou-se com uma viúva tísica que ia tossindo e morrendo, até que expirou nos braços do marido. Pestana achou aí a verdadeira dor e tentou compor um réquiem que lhe traduzisse os sentimentos, música que seria tocada em uma das missas comemorativas da morte. Passam-se os dias e os meses e as mãos do compositor não conseguem extrair a seqüência musical do requiem, sempre lhe saem polcas. Frustrado, esse homem que buscou a vida toda a melodia que julgava corresponder à perfeição, morreu sem compor nada semelhante aos grandes clássicos, morreu compondo polcas. 
·        A Causa Secreta 
Em terceira pessoa, o narrador onisciente constrói uma notável caracterização psicológica em que revela, ao fazer o estudo da personagem Fortunato, o ápice do prazer que é conseguido na contemplação da desgraça alheia. O motivo do conto é explicar o verdadeiro sentido do termo sadismo. Fortunato, caracterizado como “figura esquisita”, sempre é encontrado em ocasiões “estranhas” como em um acidente, à saída de um hospital, assistindo a um dramalhão “cosido de facadas”, ou procurando estudar anatomia e fisiologia, envenenando e dissecando animais. A amizade entre Fortunato – solteiro e capitalista – e Garcia – estudante e depois médico – começou em um acidente e evoluiu para sociedade em uma clínica, o primeiro tomaria conta da parte financeira, o segundo, da médica. Nesse intervalo, Fortunato casa-se com Maria Luísa, a mulher adoece e morre e à medida que Garcia vai se tornando íntimo da família, só observa as excentricidades de Fortunato como também se apaixona por Maria Luísa, mas trata-se de um amor recolhido, apenas mostrado na explosão de lágrimas que Garcia teve diante do caixão de Maria Luísa. 
·        O Enfermeiro 
Em flashback, o narrador-personagem, à beira da morte, pede segredo a seu interlocutor e passa a relatar o que se deu com ele anos atrás. Inicialmente contratado para ser enfermeiro de um coronel rico, mas duro, ranzinza e velho despótico, que padecia de “aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores”. Sendo o narrador um homem educado segundo as tradições cristãs, tendo seus quarenta e dois anos, sem família e vivendo de favor, sente-se disposto a mudar de vida e aceita o encargo. O convívio entre paciente e enfermeiro passou por estágios de degradação sucessiva: de uma aparente lua-de-mel, as relações foram se deteriorando até que, em um acesso de fúria, o enfermeiro comete um assassinato. A não ser por um pequeno e passageiro remorso/medo sentido pelo narrador, o crime passa despercebido. A convivência com o crime poderia se tornar insuportável no momento em que o criminoso é nomeado herdeiro universal dos bens do coronel, mas o tempo e o dinheiro são ótimos remédios, o que permite ao narrador ironicamente fazer uma emenda aos dizeres do “Sermão da Montanha”, para corrigí-lo: “Bem-aventurados os que possuem...”. 
·        O Diplomático 
O invejoso despeito, a indecisão e a imaginação sem freios são motivos para este conto. Narrado em terceira pessoa, tem como protagonista um senhor, já entrado nos anos, o solteiro Rangel. Trabalhava no escritório de um advogado, para quem copiava papéis e, como invejava os homens, copiava-os também. Na imaginação, executava mil proezas, mas na realidade era indeciso, não se dava a audácias. Falava bem, escolhia as palavras e era um bom orador. O caso é que aos quarenta e um anos, o homem andava enamorado e trazia nos bolsos uma carta de amor, endereçada à jovem Joaninha. Duas ou três vezes tivera a oportunidade de declarar-se, mas, por um ou outro motivo recolhia-se. A cena se passa em uma festa de São João na casa de João Viegas, pai de Joaninha. Um dos convidados da família veio acompanhado de um bonito rapaz de vinte e sete anos, o Queirós, empregado da Santa Casa, que arrebatou a atenção de todos na festa com seus gestos naturais e sua facilidade de conquistar as pessoas. Quem não gostou foi Rangel e se mordeu de inveja, ao ver que todas as atenções do outro estavam voltadas para Joaninha. Não houve forma de voltar atrás, uma só noite bastou para que Rangel perdesse as esperanças porque Joaninha e Queirós já estavam de namorico e se casaram depois de seis meses. Ao finalizar o conto, Machado resume as principais características de seu protagonista escrevendo “Nem os acontecimentos, nem os anos lhe mudaram a índole. Quando rompeu a guerra do Paraguai, teve idéia muitas vezes de alistar-se como oficial de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas e acabou brigadeiro.” 
·        Conto de Escola 
O narrador, em primeira pessoa, conta que preferia cabular aulas a estar na escola e aproveita para referir-se a um certo Raimundo, colega de sala, pequeno e mole, de inteligência tarda, que tinha grande medo do pai, o professor Policarpo. Este, por sua vez, era mais exigente com o filho que com os demais alunos e, à falta de lições, era o pequeno quem recebia castigos maiores. O episódio que o narrador se propõe a contar situa-se historicamente no final da Regência, um período de grande agitação política. Raimundo chamou o narrador, ofereceu-lhe uma moeda de prata para que ele lhe fizesse as lições e evitasse, portanto, o castigo. No entanto, o comportamento de Pilar, o narrador, e de Raimundo foi denunciado por um colega, o Curvelo. Houve palmatória para ambos e a moedinha foi jogada na rua. Pilar, no dia seguinte, procura reaver a moeda, mas a caminho da escola, desviou-se para seguir o tambor da companhia do batalhão de fuzileiros, depois vagabundeou por outros lugares e não foi à aula. No dia anterior, Raimundo e Curvelo lhe deram o “primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação”. 
·        Entre Santos 
Escrito em primeira pessoa, narra a experiência de um capelão que ouviu a conversa de santos da igreja que assumiram a forma humana. Entre eles estavam S. Francisco de Paula, S. João Batista e S. Francisco de Sales. A conversa girava em torno das observações que os santos faziam dos fiéis, quando estes confessavam os pecados ou vinham pedir favores. S. Francisco de Sales tomou a palavra e relatou o caso de um homem avaro que estava perdendo a mulher, acometida de uma doença fatal. Mas a avareza, sua própria e humana essência, não lhe permitiu prometer mais do que rezas em profusão: ele não conseguiu superar seu maior pecado, mesmo amando verdadeiramente a mulher. O homem perde-se nos meandros de sua auto-defesa, contorna seus vícios com os mais ousados artifícios.
 
Grupo III – Contos teoria 
            Contos que buscam teorizar ou caracterizar genérica e filosoficamente os homens em suas buscas ou em seus desafetos: “Um Apólogo”, “Adão e Eva”, “Viver!”, “O Cônego ou Metafísica do Estilo”, que será transcrito na íntegra no final deste bloco, são os contos desse grupo. 
·        Um Apólogo 
Apólogo é o nome dado a uma narrativa curta, em prosa ou verso, que visa passar uma lição de moral. Geralmente, tem como personagens seres inanimados que são dotados da “fala” pelo escritor. No caso de Machado de Assis, seu famoso “Apólogo” tem por personagens a agulha, a linha e um alfinete. A agulha é orgulhosa, porque cose, abre caminho, é dirigida pelas mãos da costureira. Mas a linha lhe responde que é ela quem vai ao baile, é ela quem dança, enquanto a agulha no final de seu trabalho volta para a caixinha da costureira. Diante da conversa agressiva entre agulha e linha, um alfinete resolve interferir e toma apalavra, dizendo à pobre agulha: “Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho pra ninguém. Onde me espetam, fico.” Para finalizar, o narrador interfere e diz ter contado a história para um professor de melancolia que lhe disse: “- também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária.” 
·        Adão e Eva 
O conto tem o pretexto inicial de revelar a um grande lambareiro certa iguaria especial. Como o guloso demonstrasse grande curiosidade para saber qual doce seria servido, os convivas puseram-se a refletir sobre qual doce seria servido, os convivas puseram-se a refletir sobre a curiosidade, recaindo a conversa sobre quem seria mais curioso, o homem ou a mulher. Veloso, um juiz de fora, tomou a palavra e contou sua versão sobre o episódio de Adão e Eva, invertendo o episódio bíblico e o próprio ato da criação. Não fora, segundo ele, Deus quem criara o mundo, o homem e a mulher, mas o diabo. Coubera a Deus somente dar-lhes “a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo (...) Vivereis aqui, disse-lhes o Senhor, e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é da ciência do bem e do mal”. O diabo revoltou-se e cuidou de devolver o insulto divino, mandando ao paraíso uma serpente que deveria tentar Adão e Eva e fazê-los saborear o fruto proibido. Mas tanto Eva quanto Adão acharam inúteis as tentações do Tinhoso e concordaram que não havia poder, ciência ou qualquer outra coisa que lhes valesse o paraíso. Deus ouviu e por intermédio do arcanjo Gabriel premiou a obediência elevando-os à estância eterna, enquanto a terra ficava entregue às obras do diabo. “Tendo acabado de falar, o juiz de fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam  uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente...” 
·        Viver! 
O conto é construído sob a forma de um diálogo, à maneira do teatro. Passa-se no final dos tempos e tem como personagens Ahasverus, Prometeu e duas águias. Inicialmente, o judeu errante medita e depois sonha. A conversa acontece no sonho de Ahasverus. Ao constatar que ele é o último dos homens, e então pode morrer, já que as profecias dizem que ele está condenado a vagar até enterrar o último homem. Ahasverus constata a presença de Prometeu e os dois personagens mitológicos travam um diálogo em que a vida é necessária e fundamental e que pela sua experiência, o errante será o eleito para ser não o derradeiro homem sobre a terra, mas para ser o primeiro entre os de uma nova raça que se anuncia, invertendo-se, portanto, as predições. 
AHASVERUS – Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias...
PROMETEU – Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vais ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: ‘Tu a viste com teus olhos, e não passarás a ela.’ Tudo passarás a ela, Ahasverus; tu habitarás Jericó.
AHASVERUS – Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste?
PROMETEU – Rei eleito de uma raça eleita.
AHASVERUS – Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias aproximam-se.)
ÁGUIA – Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.
A OUTRA – Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito. 
·        O Cônego ou Metafísica do Estilo (texto integral) 
— "VEM DO LÍBANO, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras, deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de pombos..." 
— "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..." 
Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar. 
Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver. 
Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou. 
— Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros. 
Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão. 
Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego. 
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual... 
— Sexual? 
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo. 
— Mas, então, amam-se umas às outras? 
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada. 
— Confesso que não. 
Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro. 
Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio. 
Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de cousas velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir. 
De quando em quando, aparece-lhe alguma dama — adjetivo também — e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ao eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor nomeado e predestinado. 
Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia. 
Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também. 
Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura. 
— Vem do Líbano, esposa minha... 
— Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém... 
Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo. 
Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo. 
Justamente agora é que os dous cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se. 
Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte". 
Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe. 
6.1.2 - Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo

ROTEIRO BIOGRÁFICO
      Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalvez de Azevedo), irmão do teatrólogo Arthur Azevedo, nasceu em S. Luís do Maranhão, em 14 de abril de 1857 e morreu, com 56 incompletos, em 21 de janeiro de 1913, na capital argentina. Era diplomata, por concurso, desde 1895, tendo exercido funções em várias partes do mundo.
      O desenho e a caricatura eram a sua grande vocação. Acabou romancista. "Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho os meus romances, depois redijo-os." (Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Raimundo de Menezes – Liv. Martins Edit. P. 146). Foi um dos primeiros, entre nós, a procurar viver ou sobreviver de sua profissão de escritor.
      "Escrever tem sido até hoje aqui no Rio de Janeiro a minha grilheta, muito pesada e bem pouco lucrativa..." (Apud Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – 1957 – 2ª ed. Pág. 143). "Aluísio Azevedo é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão exclusivamente à custa da sua pena, mas note-se que apenas ganha o pão: as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga..." (Valentim Magalhães – apud Raimundo de Menezes – o.c.. pág. 29).
      Por isso, muitas vezes fabricou os seus romances para (sobre)viver. Alguns de seus livros são de "pura inspiração industrial", segundo expressão de José Veríssimo. (História de Literatura Brasileira – Liv. Francisco Alves – Rio – 1916 – pág. 357). Com alguma facilidade se pode notar o desnível que existe entre os seus romances. De sua obra ficcional, bastante numerosa, o tempo, crítico severo, selecionou algumas que ficaram e ficarão na literatura naturalista brasileira. "De tudo isso só ficaram O CortiçoO CorujaFilomena Borges e O Livro de uma Sogra, são hoje a bem dizer, ilegíveis. Mas O Cortiço basta para lhe assegurar a posição de primeiro plano da nossa literatura." (Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1957 – 2ª ed. Pág. 144).
      "Casa de Pensão e O Cortiço, assinalemos desde já, situam-se no ponto mais alto da curva que descreve a evolução da obra de Aluísio Azevedo." (Josué Montello – in A Literatura no Brasil – vol II – pág. 61).
      "Quer em O Cortiço quer em Casa de Pensão, pôde realizar criações romanescas notáveis pela excelente fixação de alguns tipos, pela movimentação das cenas e pelo jogo das situações dramáticas." (Aspectos de Romance Brasileiro – Eugênio Gomes – Liv. Progresso Edit. – Salvador – s.d. pág. 129).
      Há alguma concordância na seleção das duas melhores obras de Aluísio Azevedo, conforme se pode ver pela crítica citada. Talvez o tempo tenha cometido uma injustiça, esquecendo O Coruja, uma estória muito humana de uma personagem tão bonita de alma e tão feia de corpo. Corre no livro uma lírica visão do homem.
      Diz Josué Montello que "Alcides Maia foi o único grande crítico a chamar a atenção para a alta importância de O Coruja, não apenas no panorama restrito da bibliografia de Aluísio, mas dentro do panorama geral de nossa literatura, ao afirmar que, na sua estranha personagem central, há uma criatura de arte que roça pelo símbolo e não tem rival no romance brasileiro." (A Literatura no Brasil – vol. II – pág. 62).
      Mas não há dúvida para a crítica atual que O Cortiço ficou definitivamente como sua obra-prima: apesar do caráter documental que o livro apresenta, como romance, supera o ocasional e o informativo, pela criação de personagens vivos, pela linguagem expressiva, pela superação das exagerações da escola naturalista.
      No melhor da obra literária de Aluísio Azevedo, nota-se a influência, quase sempre benéfica, dentro do campo de criação romanesca, de Zola e do autor de O Crime do padre Amaro, Eça de Queirós. Quando o autor parece escapar dos dois, torna-se um pobre "produtor de folhetins". (Alfredo Bosi – História Concisa da Literatura Brasileira – Cultrix – S. Paulo – 1970 – pág. 209).
      Pode-se classificar a obra de ficção do autor no seguinte quadro didático:
      Românticos:
      Uma Lágrima de Mulher (1879)
      Condessa de Vésper (1882) (com o título de Memórias de um Condenado)
      Girândola de Amores (1882) (com o título de Mistério da Tijuca)
      Filomena Borges (1884)
      A Mortalha de Alzira (1894)
      Demônios (1893) (Contos)
      Realistas
      O Mulato (1881)
      Casa de Pensão (1884)
      O Coruja (1885)
      O Homem (1887)
      O Cortiço (1890)
      Livro de uma Sogra (1895)
      Entrando para a diplomacia em 1895, encerrou definitivamente a sua carreira literária, em completo desencanto. Hoje, o que lhe dá renome, é a sua obra literária...
      Enredo de Casa de Pensão
      Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.
      Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, foçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.
      Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.
      "Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores." (pág. 166)
      A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...
      O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...
      Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.
      "Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." (317). Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.
      Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...
      Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.
      Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.
      A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...
      Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris..."
      O Estilo da Época
      A obra de Aluísio de Azevedo que ficou na literatura brasileira é o seu romance naturalista. "Dominava a cena artística brasileira o sistema de idéias estéticas implantado pela poderosa geração de 1870, e que constituíram o complexo estilístico do Realismo-Naturalismo-Parnasianismo." (Afrânio Coutinho – Introdução à Literatura Brasileira – Rio de Janeiro – 1964 – 2ª ed.-pág. 207).
      O realismo tende para uma visão biológica do homem; o naturalismo, para uma visão patológica: um homem dominado pelo animalesco, marcado por taras e degenerecências, produto fatal da hereditariedade, uma apenas máquina sujeita às leis físico-químicas. Os greco-latinos acreditavam na fatalidade (Moira) a quem estavam sujeitos os mesmos deuses. A ciência pseudo-ciência do século XIX ensinou ao naturalistas a crença na hereditariedade. O personagem de tragédia que era escravo da fatalidade se torna escravo da hereditariedade para os naturalistas. Uma das confusões mais comuns entre eles era a da ciência com a literatura. Se o realismo nos deu um romance-documental, o naturalismo - verdadeiro laboratório – nos deu um romance-experimental, na mesma linha do Roman expérimental de Zola (1880).
      "Entendemos que um romancista deve ser ao mesmo tempo um observador e um experimentador. O observador expõe os fatos tais quais os observou, estabelece o terreno sólido em que se vão mover os personagens e acontecimentos; em seguida surge o experimentador e faz experiências, isto é, faz seus personagens se movimentarem em determinado enredo, de modo a patentear que a sucessão dos fatos é a exigida pelo determinismo das coisas estudadas." (Zola – apud Nelson Werneck Sodré – O Naturalismo no Brasil – Edit. Civilização Brasileira – Rio de Janeiro – 1965 – pág. 33).
      Nessa fidelidade a uma pseudo-realidade está o erro fundamental de um naturalista como Aluísio de Azevedo. A pressa com que realizou a sua obra romanesca – apesar do seu inegável talento – o fez fiel demais às formas e fórmulas do naturalismo a tal ponto que o romance mostre nitidamente os andaimes e as outras marcas de sua fabricação. Os personagens se movem dentro do romance como verdadeiros robôs, teleguiados por forças mecânicas, dentro do seu meio, obedientes às forças atávicas, sem nenhuma liberdade de ser e de agir. O naturalista se esqueceu de "que os sinais exteriores são apenas uma parte da realidade, não podendo a literatura, pois, pelo levantamento apenas dos dados colhidos pela observação, dos dados exteriores, reproduzir a realidade; em segundo lugar, não compreendia que a realidade humana, que é o domínio de que a literatura se ocupa, não está nos indivíduos, mas na sociedade; finalmente, que a realidade não está no patológico, no anormal, no excepcional, mas no normal, no comum, no típico." (Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 37-38).
      Dentro do naturalismo, cabem afirmações tão dogmáticas quanto incompletas e, hoje, erradas, para uma concepção moderna do homem, como estas:
      "O romance deve ser um estudo de um curioso caso fisiológico"; "dados um homem forte e uma mulher insatisfeita, procurar neles as besta..."; "fazer em dois corpos vivos o que o cirurgião faz em cadáveres..." (Zola – Apud Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 19). Ou: "o vício e a virtude são os produtos químicos como o açúcar e o vitríolo" (Taine); "precisamos acanalhar a arte" (Courbet) (apud id. Ib. pág. 19).
      O naturalismo está plenamente representado
      em Casa de Pensão:
      1) Desde a abertura do romance, Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes..." (Casa de Pensão – pág. 25). O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." (ib. pág. 28). Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.
      2) O sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. A estória do romance se baseia num caso real, o caso do estudante Capistrano, até nos pormenores. Leiamos um resumo dos acontecimentos.
      "O emocionante caso de polícia, logo conhecido e popularizado sob a epígrafe de "Questão Capistrano", envolve dois jovens e estudantes da Escola Politécnica, antes da tragédia, grande e inseparáveis amigos: João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira.
      O tão debatido "Affaire Capistrano", que o povo e os jornais da época consagram, divide o público e nascem então acesas polêmicas. O carioca da época não fala noutra coisa, não discute outro assunto , não se preocupa senão com os dois processos criminais apesar de rotineiros, em que se misturam a honra de uma moça e o homicídio do seu sedutor.
      O caso principia trivialmente assim: dona Júlia Clara Pereira é modesta professora de piano, que, naquele ano de 1875, mora com os dois filhos Antônio Alexandre Pereira, estudante de engenharia, e Júlia Pereira, de 20 anos, em pequena casa da Rua Silva Manuel, nº 10. A pobre viúva baiana luta com inauditas dificuldades para prover a pequena família. As aulas de piano é que lhes mantêm as despesas da casa e dos estudos. A habitação apresenta-se em péssimo estado e resolvem alugar outra, no ano seguinte, bem maior e mais cômoda, na Rua do Alcântara, nº 71, e que, além do pavimento térreo, tem o sótão em forma de chalé.
      Como a nova moradia possui alguns quartos a mais, deliberam alugá-los, montando assim uma casa de pensão, muito comum naqueles tempos. Dessa maneira podem auferir outros lucros para os gastos sempre crescentes. Os dois primeiros pensionistas são colegas do filho: Mariano de Almeida Torres e João Capistrano da Cunha, rapazes procedentes do Paraná, tidos e haviados como de bom comportamento e acolhidos no seio da família Pereira sob o maior carinho e confiança.
      Em pouco, no convívio diário, nasce o namoro entre o estudante Capistrano e a jovem Júlia. O idílio pega fogo... Voraz concupiscência encarrega-se do resto... Uma noite – naquela de 13 para 14 de janeiro de 1876 – acontece o imprevisto: o rapaz não se contém e demanda o quarto da moça, desonrando-a às brutas, violentado-a...
      Na manhã seguinte, a jovem, entre lágrimas, conta à mãe o que lhe acontecera. A viúva não tem dúvidas: vai às falas com o moço. Este, como sói acontecer em casos desse jaez, dá um pretexto qualquer, procura adiar o compromisso do enlace para data bem remota, quando, então, reparará o dano causado. Enquanto isso, dias e meses decorrem sem nenhuma atitude do namorado, frio e indiferente ao cumprimento da palavra empenhada.
      Quando menos se espera, sai de casa e não volta mais. Some de uma vez. Todos ignoram-lhe o paradeiro. Deixa, apenas, na pensão a roupa, os livros, a mala... A mãe e o tutor da vítima apressam-se em procurar a delegacia de polícia mais próxima para a respectiva queixa. Comparecem acompanhados do advogado dr. Jansen de Castro Júnior, e exigem 50 contos de indenização pelos danos causados!
      O inquérito tem o seu seguimento natural. Concluído, é enviado a Juízo. Os jornais se encarregam de divulgá-lo num noticiário pormenorizado e profuso, enchendo colunas e colunas, dias e dias seguidos, a explorar morbidamente a curiosidade pública. A população apaixona-se pelo caso, tornado assim de repente, para conseguir fácil casamento... Outros, mais exaltados, são de opinião contrária, julgam-no digno de pena severíssima.
      O indiciado João Capistrano da Cunha, acolitado por três bons advogados, drs. Busch Varela e Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, comparece à barra do Tribunal, no dia 17 de novembro. Figura como promotor público interino o dr. Ferreira de Oliveira, que produz veemente acusação. A colossal massa popular, que enche o salão, vibra. Contradita-se o defensor do réu, dr. Busch Varela. À réplica do promotor, respondem os outros dois patronos: dr. Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, que conseguem a absolvição do seu constituinte, após calorosos debates, ovacionando os diversos advogados, e, à saída, prorrompe em palmas ao absolvido, carregado em triunfo pelos colegas. Oferecem-lhe ainda um banquete em regozijo, no Hotel Paris
      O desfecho tem viva repercussão na sociedade fluminense. A viúva e o irmão da vítima não se conformam com tão injustiça e iníqua sentença. Desesperado, o jovem Antônio Alexandre Pereira passa três dias pensando no que deve fazer.
      Precisa tomar atitude. A idéia fixa aflige-o, mortifica-o: necessita lavar a honra da família tão rudemente ofendida. Resolve fazer justiça com as próprias mãos. Impõe-se uma lição de mestre ao impune autor da desgraça da irmã, que chora, dia e noite, envergonhada e entre a profunda prostração.
      O acadêmico adquire uma arma de 25 cápsulas por 22$000 – uma tragédia atrai outra tragédia – e sai à procura do amigo da véspera. Encontra-o em olena na Rua da Quitanda, fronteiro ao nº 128, cerca das 10 da manhã, quando se dirige à casa do seu correspondente, um negociante da Rua de São Pedro. Pelas costas alveja-o com cinco tiros e fere-o gravemente com apenas um no pulmão esquerdo. O rapaz corre para o interior do armazém, fugindo a novo disparo e logo cai sem forças ao chão. Está morto!
      O agressor tenta, em vão, escapar, quando é preso em flagrante por Augusto César de Mascarenhas, que passa na ocasião, e entrega-o à Justiça.
      O pulmão da vítima achava-se atrofiado, podendo morrer em breve tempo, constataram os médicos na autópsia.
      A rapaziada da Politécnica exalta-se e promove uma série de homenagens ao colega morto: veste-se de luto, chora, vai incorporada ao enterro, que se transforma em apoteose pública, carregado a mão, por estudantes e políticos que comparecem concitados pela astúcia partidária de Saldanha Marinho, um dos advogados do morto. O próprio Visconde do Rio Branco, diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias.
      O processo de homicídio corre os trâmites legais. O acadêmico Antônio Alexandre Pereira senta-se no banco dos réus a 20 de janeiro de 1877. É defendido pelo mesmo advogado que figurara no caso da irmã, o dr. Jansen de Castro Júnior. Os debates atraem mais gente que no episódio anterior do defloramento. Agora a coisa é outra: as antipatias populares, até ontem contra a família Pereira, transforma-se então em simpatias pelo assassino... O mesmo júri, que absolve o primeiro, absolve o segundo! Inocenta-o por unanimidade de votos! Também uma salva de palmas acolhe o veredictum no Tribunal. É o acusado carregado em triunfo pelos mesmos colegas, que ovacionaram o morto da véspera...
      Em rápidos traços, eis as duas tragédias que abalam o Rio de Janeiro daqueles tempos: a famosa "Questão Capistrano", que vai, sete anos depois, inspirar o romancista Aluísio Azevedo no enredo do livro a que dará a epígrafe de "Casa de Pensão".
      (Raimundo de Menezes – Aluísio de Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Editora – S. Paulo – 1958 – pág. 147 a 150).
      3) Os personagens, na sua totalidade, são retratados sob o ângulo patológico: são casos anormais.
      Amâncio aparece como um super-excitado sexualmente, condicionando proximamente pelo ambiente da casa de pensão e remotamente pelo sangue e pela educação; Mme. Brizard e Coqueiro se apresentam como gananciosos a ponto de fazerem negócio à base da cunhada e irmã; Nini sofre de crises agudas de loucura histérica, estrebuchando e caindo diante de Amâncio; Lúcia e o marido se mostram também tipos esquisitos, ela pelo sexo e ele por estranho alheamento. Amélia também se mete, de cambulhada, nessa enxurrada de sujeiras tentando um bom negócio de sexo e dinheiro... A própria D. Hortênsia, mulher do Campos, manifesta sinais de insatisfação sexual: apesar das negativas iniciais diante das propostas... Essas personagens, quase todas, poderiam mudar-se da Casa de Pensão para outro romance do autor, mais exagerado, ao sentido naturalista: O Homem. E se dariam muito bem no novo ambiente ainda mais patológico. A casa de pensão não se parece com um pequeno e confuso hospital? Os seus moradores são, em geral, verdadeiros doentes;
      4) Quebra-se o esquema romântico da vitória do bem sobre o mal, do triunfo do(s) herói(s). Tudo se mistura na vida, trigo e joio, ninguém consegue separá-los, perde-se a consciência do bem e do mal. Afinal, quem é o bom e quem é o mau? Se, até certo momento, a opinião pública esteve ao lado de Amâncio, quem nos garante que, para o final, não estaria já mudando para o apoio a João Coqueiro? Se o assassino for a julgamento, defendido pelo inteligente e chicanista Dr. Teles, certamente será também absolvido...
      Além disso, não existem ideais a que aspiram os personagens: eles ficam reduzidos ao terra a terra, aos aspectos, fisiológicos e animalescos, aos grandes egoísmos que fazem os homens sórdidos e vis. Não há, em ninguém, traço algum de grandeza, nem nos personagens principais, nem nos secundários. Essa visão negativista e materialista exclui qualquer consciência moral no julgamento dos atos e personagens. E, dentro do quadro de pensamentos e ações do casal Mme. Brizard e João Coqueiro, o que se faz é praticar o princípio de que os fins justificam os meios. Assim, o homem ficar reduzido a um amontoado de contradições, de secreções, de completo materialismo e mecanicismo. Tudo é esquematizado de acordo com uma obediência cega à lei de causalidade: ficam eliminadas as ações e reações pessoais para dar lugar às reações de massa, sem liberdade. Os personagens não se movem, são movidos e levados, cada um, para o seu desenlance.
      5) Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.
      "Campos entrou no seu escritório e foi sentar-se à secretária. Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par..." (pág. 13).
      Um retrato:
      "Seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fluidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa. Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro, nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e ruivo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quando muito, vinde e dois..." (pág. 55, 56 – É João Coqueiro).
      Descrição da casa de pensão:
      "A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro. Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo. Três largas janelas de sacada, guarnecidas de cortinas brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e gasta, inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes laterais, um detestável retrato a óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos, vasos bonitos de louça da Índia, cheios de areia até à boca..." (pág. 96). E a descrição continua pela página seguinte.
      Ainda um outro retrato: Amélia em dia de festa:
      "E de fato Amélia nesse dia estava encantadora. Vestia fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor-de-rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia-se-lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas. O vestido curto, muito cosido ao corpo, enluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família. Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão artística..." (pág. 97 – E a descrição continua...)
      E o tísico do quarto nº 7:
      "O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia.
      A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curava, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentiam-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvazamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas da dentadura..." (pág. 219 – A descrição continua...)
      O capítulo XVI começa com um longo e minucioso pesadelo de Amâncio...
      6) O naturalista manifesta tendência reformadoras: quando apresenta um mundo inferior, cheio de taras e doenças, com os seus personagens marcantemente anormais, a sua preocupação é a melhoria das condições sociais e geradoras de todo esse quadro clínico muito ruim. O narrador em terceira pessoa, onisciente e onipotente, de vez em quando faz seus comentários à margem.
      "O que se lança ao peito da amante desde logo arde e evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno, brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite..." (pág. 43).
      "Assim sucede sempre aos filhos educados à portuguesa, cujos pais sentem vexames de lhes patentear o seu amor." (pág. 167)
      7) Com relação ao vocabulário o romancista naturalista manifesta preferências por palavras científicas ou pseudo-científicas na busca de exprimir-se com o máximo de exatidão. Vejamos alguns exemplos:
      "Conseguiram fazê-lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos..." (pág. 29).
      "... não se contrai ao fartum insalubre das variolóides..." (190)
      "... no desespero de sua ortopnéia..." (219)
      "... na sua distanasia." (220)
      "... desde a ponta dos dedos até os bíceps" (237)
      "... boca devastada por uma anodontia horrorosa." (299)
      Aspectos Sociais
      Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. No "Cortiço" o meio social é mais baixo; na "Casa de Pensão" é médio.
      Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na "Casa de Pensão" de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." (A Correspondência de Fradique Mendes – Lello e Irmão Edit. Porto – 1952 – pág. 235). O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...
      Que vocação tinha Amâncio para a medicina?
      "Não se trata aqui de fazer um médico, trata-se de fazer um doutor, seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma profissão, trata-se de obter um título. Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade." (Casa de Pensão – pág. 43). A saída de Amâncio de seu meio provincial, por necessidade de estudar, produz uma pletora no Rio de Janeiro de tantos e tão diversos tipos de estudantes, provenientes dos mais variados pontos do nosso imenso país: no Rio eles aprendem com facilidade, com verdadeiros professores, as artes não de estudar, mas de passar de ano. Coqueiro foi quem instruiu seu protegido Amâncio nos truques dos apadrinhamentos e protecionismos especiais (pistolões) para ser aprovado, apesar da maré cheia de sua ignorância.
      Como conseqüência do meio e das intenções dos donos da pensão, acontece, de modo fatalístico, a sedução de Amélia. O fato tem repercussões sociais: quase toda a classe estudantil fica a favor do estudante, vítima do meio, dos ardis de todos (Mme. Brizard e Coqueiro), da própria Amélia... dos camarões. No apoio a Amâncio estava um apoio também ao machismo, mas de ... conquistador. Amâncio aparece sempre condicionado e pré-determinado para o seu final trágico, por causa do extremo sensualismo. É o erótico que tenta conquistar até a mulher de seu protetor, o Campos. O erotismo é apontado como um dos nossos defeitos, por excesso, em Bandeirantes e Pioneiros (Paulo Prado)Sobre os excessos sexuais e suas doenças, Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala) faz um trocadilho muito significativo: "no Brasil, antes da civilização, tivemos a sifilização..." Mme. Brizard e João Coqueiro são apresentados ao leitor como antipáticos e condenáveis, pela sua ganância de dinheiro, pelo seu mau caráter: ambos estão comprometidos gravemente no verdadeiro negócio de vender ou alugar Amélia. Ela era o meio de arrancar dinheiro fácil do rico Amâncio. A culpa principal é, sem dúvida, a própria Amélia, pivô da tragédia. Refletindo os seus próprios problemas familiares, Aluísio Azevedo aponta também erros da educação caseira e escolar. O pai do autor o tratava com certa distância, como o pai de Amâncio que era secarrão, sem diálogo, duro em apoiar os métodos coercitivos e antipedagógicos do prof. Pires. Tanto o pai como o professor ficaram como verdadeiros espantalhos e deixaram marcas na formação do rapaz, tornando-o recalcado e hipócrita. Por seu lado, D. Ângela se mostra sempre muito submissa ao marido, à moda antiga, e muito sentimental no relacionamento com seu filho. Então, os extremos, materno e paterno, se juntam para deformar para sempre a educação de Amâncio.
      Outro fator decisivo na corrupção final do estudante é o dinheiro fácil com que ele se engolfa em farras e boêmia e se afasta dos livros. É com razão que Lúcia Miguel Pereira sintetiza toda a dinâmica do romance em duas palavras fundamentais:
      "Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade". (Prosa de Ficção – Liv. José Olympio Edit. – Rio de Janeiro – 1957 – 2ª ed. – pág. 152).
      Ainda como exemplo desse vento social que sopra por todo o romance e pelos outros melhores do autor, note-se o estudo que faz dosmovimentos de massa, as flutuações da opinião pública, a posição a favor de Amâncio e, para o fim, uma clara insinuação de que já começa a tomar partido a favor de Coqueiro e sua irmã. O autor não aprofunda esse seu estudo de psicologia de massa, mas apresenta, apesar de superficial, um quadro interessante e válido.
      Se o romance continuasse..., o leitor pode deduzir, com bastante garantia, a massa popular estaria pressionando o júri para a absolvição de João Coqueiro, por legítima defesa da honra da irmã.
      Linguagem
      Não se pode dizer que a lingua(gem) do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
      Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise. É uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal. São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Seme não engano, você está certo." Creio que este lusitanismo reflete o tempo: era moda brasileira imitar a sintaxe portuguesa. Tenho exemplos de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Martins Pena, Machado de Assis... Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum. Pode-se definir o fenômeno de colocação como o faz Caldas Aulete:
      "Apossínclise: intercalação de alguma ou algumas palavras entre o verbo e o pronome complemento átono, como, por exemplo: "o que lhe eu contei, em vez de: o que eu lhe contei..." (Edit. Delta S.A. – Rio – 1964 – 5ª ed. in verbete).
      O hoje esquecido gramático português, antigamente muito em voga, Cândido de Figueiredo, publicou uma obra em três volumes com este título: "O que se não deve dizer".
      Como são muitos os exemplos colhidos no romance, exemplifiquemos apenas:
      "Que se não deixasse levar pelos pândegos..." (55)
      "... o que lhe não desejo" (56)
      "Amâncio já se não lembrava" (62)
      "... porque ela se não desprendesse logo" (73)
      "São dessas coisas que se não explicam" (103)
      "... hás de ver que te não faltará nada" (104)
      "Amâncio já os não distinguia" (119)
      "... já se não preocupa" (127)
      "... já se não podia conter" (143)
      "... de tal modo que se não pode levantar da cama" (169)
      "... que se não deixasse visgar..." (205)
      "Que ela já o não deixava sair" (234)
      "Se me não engano" (334)
      O tratamento usado pelo autor também é diferente do comum no Brasil (exceto Rio Grande do Sul, por exemplo): tu em vez de você. Os personagens, quando se ratam por iguais, empregam sempre a Segunda pessoa do singular.
      "Bem, de acordo, respondeu Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de senhor. Entre rapazes não deve haver cerimônias mal entendidas; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos desde já por tu" (56).
      "Mesmo escrevendo o diálogo quase sempre em norma culta, Aluísio soube fixar algumas características dos níveis mais baixos..." (Dino Preti – Siciolinguística – Cia Edit. Nacional – S. Paulo – 1974 – pág. 137). Conforme a situação e o status do personagem, a linguagem desce a níveis inferiores.
      O vocabulário do autor, às vezes, soa esquisito aos nossos ouvidos. Maria de Lourdes Teixeira cita alguns exemplos:
      À página 56 encontramos esta frase: "... continuava a parolar com embófia". Ora, o substantivo embófia ou sua variante, empófia, de origem asiática e muito encontrável em frei João dos Santos, em sua obra Etiópia Oriental, não me parece usado no Brasil. Da mesma forma, o verbo aiar (gemer), particularmente caro a Castilho, e que jamais vi em nossos autores, lá está na página 63: "Amâncio, muito prostrado, mole, a virar-se de uma para outra banda, aia-va sempre". Na página 65 aparece o adjetivo retardia (empregado com freqüência por Filinto Elíseo), em lugar de retardatáriotardovagaroso. Na página 66: "o homem do lixo entrava, e saía, familiarmente, com o seu gigo às costas".
      Gigo, em vez de cesto ou cabaz, vocábulo aquele muito usado por Ramalho Ortigão nas Farpas. Na mesma página se refere a "uma escova de fato", em lugar de escova de roupa, forma aquela não brasileira e que dá azo a duplo sentido. E linhas abaixo: "encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos", frase cuja construção nada tem de brasileira, parecendo antes coligida de autor português. Na página 105 o romancista menciona uma "corbelha de farinha"; isto é, a nossa familiar e nacionalíssima farinheira. Lembre-se a propósito que tal expressão, corbelha, de boa linhagem vernácula mas admitida em uso no Brasil através do francês, é encontrada em Diniz, no Hissope, e em Castilho, nas Geórgicas. Na página 121 lá está, por sinal que na boca de uma francesa – Madame Brizard – certo ditado arcaico português que se encontra na Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos: "por aí não irá o fato às filhoses". No clássico citado: "não vay por ahi o gato aos filhós." Logo na página seguinteAluísio emprega o substantivo godilhão, em lugar de grumo, ou qualquer outro sinônimo de uso corrente no Brasil: "formar-lhe godilhões na garganta". Na página 192 ressalta em certa frase outro vocábulo estranho e ouvidos nacionais: "A sua primeira idéia foi chamar o Pereira e mostrar-lhe a mulher no latíbulo do amante". O substantivo latíbulo, que me lembre nunca encontrado em outro autor brasileiro (e que significa "antro de pecadoesconderijo da perdição), é muito usado por Bernardes da Nova Floresta e por outros clássicos portugueses.
      (Esfinges de Papel – Edart – S. Paulo – 1966 – pág. 138).
      "A obra de Aluísio Azevedo, portanto, revela-se útil, sobretudo como documento da língua e da cultura de nossa sociedade, nas décadas de 80 e 90, ainda muito impregnadas da influência portuguesa. Além disso a rudeza dos temas que abordou nos permite o conhecimento de uma linguagem afetiva popular, que em muito contribui para a retratação dos níveis de fala de suas personagens". (Dino Preti – ib. pág. 140).
      Técnicas Narrativas
      O problema da criação de um personagem romanesco vira mistério até para o próprio autor. Criado o personagem, ninguém sabe, nem o seu criador, até onde trabalhou a sua imaginação e onde começa a simples observação da realidade circunstante. O personagem se pode identificar com esta ou aquela pessoa real? Ou nasceu totalmente da imaginação onipotente do romancista? Nem um extremo nem outro pode corresponder à realidade da criação literária
      "O ficcionista pode usar uma pessoa que conheceu como ponto de partida para a composição duma personagem, mas tendo o cuidado de evitar a fotografia servil. É justamente durante esse processo de despistamento ou então no minuto em que o autor resolve criar uma personagem sua, sua mesmo, que o computador insidiosamente começa a mandar-lhe mensagens, e o autor corre o risco de usar esses elementos com orgulho demiúrgico, convencido de que está mesmo criando do nada..." (Érico Veríssimo – Aguilar – vol. III – pág. 83). Note-se que o computador a que se refere Érico Veríssimo é o fantástico inconsciente...
      Em Casa de Pensão, o autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais. (Ver Estilo de época). Temos portanto um romance à clef, romance de chave, porque os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais. Assim podemos identificar os figurantes principais.
      Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos = João Capistrano da Silva, estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.
      Amélia ou Amelita = Júlia Pereira, a moça seduzida, pivô da tragédia.
      Mme. Brizard = é uma viúva, dona da casa de pensão: D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino.
      João Coqueiro = Janjão = Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido.
      Dr. Teles de Moura = Dr. Jansen de Castro Júnior, advogado da família da moça.
      João Capistrano foi acusado como incurso nas penas do art. 222, do Código Criminal do Império: "Ter cópula carnal por meio violento ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas: de prisão por três ou doze anos, e de dotar a ofendida."
      O autor toma visível posição a favor de Amâncio e contra Amélia, João Coqueiro e Mme. Brizard: (Raimundo de Menezes – Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Edit. – S. Paulo – 1958 – pág. 151). O mesmo autor me informa que o romance já estava, em semente, em Casa de Cômodos (pág. 342).
      A narrativa não obedece a uma ordem cronológica: o cap. I coloca o leitor diante de Amâncio e Campos, já no Rio de Janeiro. Depois é que o autor volta ao Maranhão para contar alguma coisa, o que é fundamental dentro das fórmulas naturalistas, da vida e da educação do personagem. Recorda a escola e a família, o leite que mamou da ama negra, leite contaminado, a dura opressão do professor e do pai... tudo para condicionar fatalisticamente o personagem e fazê-lo chegar, sem liberdade, aonde tinha que chegar. São os truques repetidos pela escola naturalista. (Veja-se, por exemplo, o mesmo determinismo em O Missionário de Inglês de Sousa). Essa volta é uma técnica comum que hoje se chama flash back, palavra tomada de empréstimo ao cinema.
      Depois, a narrativa caminha, de modo geral linearmente e os episódios se passam só no Rio de Janeiro. Amâncio não faz viagens, planeja apenas a volta à Província: viagem que não chega a realizar pelos incidentes que o leitor conhece. Um pequeno paralelo que se fizesse entre o autor e Machado de Assis (lembrem-se de que Memórias Póstumas de Brás Cubas é da mesma data que O Mulato (1881) mostraria que Aluísio, diferente do romancista carioca, não faz descidas em profundidade na alma dos personagens. Eles se forma superficialmente sem pesquisas psicológicas, uma das características do autor de D. Casmurro. Sem desvalorizar o maranhense, pode-se afirmar que Machado de Assis realizou uma obra muito mais orgânica, até mesmo por vocação, por maior talento. Aluísio escreveu sob pressão ou opressão, enquanto tinha necessidade de sobreviver e até contrariado porque, segundo sua própria confissão, tina a vocação da pintura, do desenho, da caricatura, não da literatura. Acabada a necessidade premente de sobreviver, parou de escrever, definitivamente, engolfando-se na diplomacia.
      Como narrador fora da estória, como já foi observado em outro lugar, o autor costuma fazer algumas observações marginais, inclusive como intenções críticas, sobre educação, sobre os personagens, sobre os fatos.
      Pareceu-me feliz o corte final na narrativa para fechar o romance: não fez nenhum comentário a mais, o que seria excrescente. Já noCortiço, Aluísio Azevedo ainda acrescenta à tragédia final de Bertoleza um pequeno e inútil comentário. Terminando como terminou deixa ao leitor o trabalho de perguntar o que irá acontecer ainda, como ficarão as coisas, sobretudo a situação de João Coqueiro. Será ou não absolvido? Se os fatos reais nos dão uma resposta (o assassino foi absolvido), o romance deixa em aberto. A mãe de Amâncio também desaparece com o final do romance numa atitude indecifrável: quais foram as suas reações diante do retrato do filho morto? Indecifrável no texto da narrativa e mito fácil para o sentimento e a imaginação de qualquer leitor.
      Como um naturalista jura fidelidade à vida e à realidade, segundo as suas concepções de vida e de realidade, o final está de acordo: não há uma vitória do(s) herói(s), não há um fecho feliz. Quem é que diz que a vida obedece aos nossos desejos planos?
      Crítica
      1) "O autor começa entrando logo em cheio na ação do seu romance e, uma vez penetrando no círculo em que vivem os seus personagens, não se afasta mais deles, como que saturado de todos os elementos constitutivos do ambiente físico e moral da famosa casa de pensão, assunto do seu livro. Como trabalho de observação, o romance tem tudo quanto é lícito desejar em uma composição desta ordem. Fundando-se em um fato verdadeiro, que a cidade do rio de Janeiro presenciou há anos, compreende-se que a lógica dos caracteres mais dramáticos dessa história não podia falhar. Tendo, além disto, o romancista vivido em estabelecimentos da natureza do que descreve, estava perfeitamente habilitado a dar toda a unidade possível à vida do grupo humano que se encarregou de estudar................................"
      "A Casa de Pensão é um microcosmo: todos os elementos que o constituem, por um processo felicíssimo de cerebração inconsciente, atraem-se, repelem-se, aglutinam-se e dão, por último, uma sensação que pode muito bem ser comparada à reminiscência, em dias febricitantes e de hiperestesia mnemônica, de sucessos presenciados em alguma parte." (Obra Crítica de Araripe Jr. – M.E.C – Casa de Rui Barbosa – Rio – 1960 – vol. II – pág. 84 e 85).
      2) "Ele trouxe à nossa ficção mais justo sentimento da realidade, arte mais perfeita de sua figuração, maior interesse humano, inteligência mais clara dos fenômenos sociais e da alma individual, expressão mais apurada, em suma, uma representação menos defeituosa da nossa vida, que pretendia definir. Dos que aqui por vocação ou mero instinto de imitação demasiado comum das nossas letras, seguiram o naturalismo e se nele ensaiaram, o que mais cabalmente realizou este feito da nossa doutrina literária foi Aluísio Azevedo, com uma obra de mérito e influência consideráveis..." (História da Literatura Brasileira – José Veríssimo – Liv. Francisco Alves – Rio – 1916 – pág. 336).
      3) "Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade. Entretanto, e nisso reside a prova do talento de romancista de Aluísio Azevedo, tomados em conjunto, esses bonecos de engonço adquirem inesperada vitalidade. Se a vida interior é quase nula, a vida de relação é ativa e real. Desde que se trate de contatos superficiais, a narrativa se movimenta, ganha força e nervo... Da soma das criaturas e duas dimensões surge uma entidade nova – a casa de pensão, com os seus moradores de uma psicologia especial, pobres criaturas desenraizadas pela enxurrada da vida, provenientes dos meios os mais diversos, que adquirem uma espécie de alma comum, feita pela solidariedade negativa que as une." (Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1957 – 2ª ed. pág. 152 – 153).
      4)" Em Casa de Pensão, realmente, há qualidades marcantes de ficcionista, e o ambiente, o das habitações coletivas, conhecido do autor, e a marca que deixa nas criaturas, também por ele experimentada, ficam excelentemente representadas.".....
      "Aluísio Azevedo é um exemplo, no naturalismo brasileiro, do escritor que trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o desgregamento romântico, a que se submete demasiado facilmente, embora lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa peado, a que obedece a contragosto." (História da Literatura Brasileira – Nelson Werneck Sodré – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1960 – 3ª ed. – pág. 360 – 361).
      5) "Em Casa de Pensão – cronologicamente, o primeiro grande romance de Aluísio, depois de O Mulato, o romancista marca a transição de dois ambientes: o do Maranhão, de que provinha, e o do Rio de Janeiro, a que se adaptara. Este livro, pelo aglomerado humano que esboça, é uma espécie de preparação para a experiência mais profunda e mais ampla de O Cortiço. Nele encontramos o Aluísio aprimorado, senhor da técnica da narração, mestre da fixação de tipos e caracteres, a conduzir o drama ou aventura de seus personagens com o rigor da justa medida. Não há excessos em suas páginas. O próprio desfecho que poderia parecer arbitrário, é uma transposição do caso real para o romance." (Aluísio Azevedo – Josué Motello – Agir – 1963 – pág. 11 – 12).
      6) "Em Casa de Pensão, de 1884, que firmam melhor as qualidades do escritor. Nesse romance mostra-se ele mais senhor do ofício. A apresentação dos personagens, a descrição das cenas, a evolução do enredo, são realizados com maior senso de objetividade e equilíbrio. Reveste-se de toda a sobriedade o momento em que Amâncio se apresenta a Campos, interrompendo-lhe a correspondência para o norte. Nem são destituídos de vida episódios de boêmia carioca. Muitos personagens exsudam vida, como aquele Campos ou a esposa, Hortênsia. Não se isenta, entretanto, de lacunas. Há criaturas, como João Coqueiro ou Amelinha, em cujos perfis o autor se gasta em tintas naturalistas e que acabam por se afogar no convencionalismo. Há outros, como Amâncio, de que temos a impressão de que vivem de real vida para logo em seguida sentirmos baldos de realidade." (A Literatura Brasileira – O Realismo – João Pacheco – Edit. Cultrix – S. Paulo – 1963 – pág. 135).
      7) "Não resta dúvida que a obra de Aluísio Azevedo resiste ao tempo e ao desgaste das escolas, por revelar força criadora incomum em nossa ficção e por se conjugarem nela a observação da realidade brasileira com seus problemas sociais, a experiência humana e o conhecimento artesanal. E todos esses atributos impulsionados por intensa vibração participante, bem típica não só do temperamento do autor como de sua filiação naturalista.
      Respeitadas as características de cada um e as conseqüentes diferenciações, pode-se dizer que as obras de Aluísio Azevedo, José de Alencar e Machado de Assis constituem as colunas de resistência do romance brasileiro do passado. E nessa trindade de valores o lugar ocupado pelo maranhense tem, além disso, especial significação historiográfica, sendo ele como é o tal como o concebeu Zola, com os seus postulados: a crítica da sociedade, "a ciência dos temperamentos", a anatomia dos caracteres, a patologia das paixões, a determinação exata das circunstâncias, as finalidades éticas e, de acordo com o pensamento de Eça de Queirós, os ideais de justiça e verdade."
      (Maria de Lourdes Teixeira – ibidem – pág. 139).

EXERCICIOS SOBRE CASA DE PENSÃO

1. (Carlos-2009)“Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par.
       Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e grande,[...] (p.01) ” Nesse trecho do livro Casa de Pensão, pode-se afirmar que:

a)   existe um desprezo pela técnica descritiva.
b)   predomina a descrição sobre a narração no trecho “Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte.”
c)   é clara na passagem “Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d’ água, sujo de pó, e um pincel chato”  a presença da zoomorfização.
d)   o fragmento é revestido pela técnica narrativa-descritiva, característica marcantenos textos Realistas/Naturalistas.
e)   predomina a narração sobre a descrição no trecho “Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d água, sujo de pó, e um pincel chato”. 

2. (Carlos-2009) “Era de vinte anos, tipo do Norte, franzino, amornado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes, se bem que alterados por um leve estrabismo.”(p. 01-02) No livro Casa de Pensão, essa é a primeira descrição que se tem sobre:

a)   o antagonista João Coqueiro.
b)   o protagonista Sr. Campos.
c)   o antagonista Amâncio Vasconcelos.
d)   o protagonista João Coqueiro.
e)   o protagonista Amâncio Vasconcelos.

3. (Carlos-2009) “- Foi há seis anos, observou o moço, limpando o suor que lhe corria abundantemente pelo rosto.” (p. 02). A oração sublinhada:

a)    faz parte da fala da personagem.
b)    trata-se de uma oração intercalada, referindo-se a onisciência do narrador.
c)    trata-se de uma oração reduzida, referindo-se a onisciência do narrador.
d)    trata-se da fala do narrador provando a sua participação como personagem.
e)    classifica-se como um aposto numerativo.

4. (Carlos-2009) “A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português.” (AZEVEDO, Aluizio. Casa de Pensão. p-03). Na parte sublinhada, percebe-se uma figura de linguagem predominante:

a) metonímia               b) catacrese                c) sinestesia       d) prosopopéia  e) paronomásia


5. (Carlos-2009) Sobre a “Questão Capistrano”, é falsa a alternativa:
a) O caso principia trivialmente assim: dona Júlia Clara Pereira é modesta professora de piano, que mora com os dois filhos Antônio Alexandre Pereira, estudante de engenharia, e Júlia Pereira, de 20 anos, em pequena casa. A pobre viúva baiana luta com inauditas dificuldades para prover a pequena família. As aulas de piano é que lhes mantêm as despesas da casa e dos estudos. A habitação apresenta-se em péssimo estado e resolvem alugar outra, no ano seguinte, bem maior e mais cômoda, e que, além do pavimento térreo, tem o sótão em forma de chalé. 

b) É o emocionante caso de polícia, logo conhecido e popularizado sob a epígrafe, envolve dois jovens e estudantes da Escola Politécnica, antes da tragédia, grande e inseparáveis amigos: João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira.

c) O tão debatido "Affaire Capistrano", que o povo e os jornais da época consagram, divide o público e nascem então acesas polêmicas. O carioca da época não fala noutra coisa, não discute outro assunto, não se preocupa senão com os dois processos criminais apesar de rotineiros, em que se misturam a honra de uma moça e o homicídio do seu sedutor. 

d) Foi o namoro entre o estudante Capistrano e a jovem Júlia. Uma noite, no ano de 1876,  acontece o imprevisto: o rapaz não se contém e demanda o quarto da moça, violentado-a brutalmente.

e) Caso ocorrido no Rio de Janeiro e recriado por Aluizio Azevedo como forma de alongar o enredo do livro. O fato real é trágico, porém o autor de Casa de Pensão, transforma-o num fato irônico, o que distancia o real do fictício.

  
6. (Carlos-2009) Associe as personagens de Casa de Pensão com as personagens do caso Capistrano, acontecimento base para a criação do livro.

(1) Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos 
(2) Amélia (Amelita)
(3) Mme. Brizard 
(4) João Coqueiro (Janjão)
(5) Dr. Teles de Moura


(  ) Dr. Jansen de Castro Júnior: advogado da família da moça.
(  ) João Capistrano da Silva: estudante, acusado de sedução. Foi absolvido. 
(  ) D. Júlia Clara Pereira: mãe da moça e do rapaz, assassino. É uma viúva, dona da casa de pensão.
(  ) Antônio Alexandre Pereira: irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido. 
(  ) Júlia Pereira: a moça seduzida, pivô da tragédia. 

7. (Carlos-2009) Acho apenas que devia estender a sua teoria até o estudo de certas ciências... como a Medicina... Sim! (...)”. A partir desse trecho do livro Casa de Pensão, revela-nos que o autor observa:

a) que naquele momento, ou seja, no século XIX, estava marcado pelo apogeu da ciência. Todas as ciências ganharam importância social. Só era levado em consideração aquilo que pudesse ser provado pelas teorias e hipóteses observáveis pela ciência.

b) que naquele momento, ou seja, no século XVIII, estava marcado pelo apogeu da ciência. Todas as ciências ganharam importância social. Só era levado em consideração aquilo que pudesse ser teorizado pelas filosofias ou hipóteses observáveis pela ciência.

c) a importância do aprofundamento intelectual por parte de cada indivíduo como forma de ascensão social e base para capitalismo. Isso é retratado no livro pelo interesse de João Coqueiro pela medicina.

d) a importância do aprofundamento intelectual por parte de cada indivíduo, característico do Naturalismo, como forma de ascensão social e base para capitalismo. Isso é retratado no livro pelo interesse de Amâncio Vasconcelos pela medicina e sua busca pela faculdade no Rio de Janeiro para a sua formação tão desejada.

e) a critica feita à Ciência, uma vez que o que vigorava na época era o estudo da Filosofia. Assim, o campo científico não tinha valor. Todas as correntes científico-filosóficas surgidas no século XIX, principalmente o Determinismo, são criticadas no livro Casa de Pensão.

8. (Carlos-2009)Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva; não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa; o guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e, só se determinava a isso, tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente”. (p.03).

No trecho: “Apesar de inteligente e de brasileiro...”, pode-se examinar:

I.        que era um defeito Campos ser brasileiro.
II.     que ser brasileiro e inteligente são coisas incompatíveis.
III.  refere-se, apenas, a nacionalidade de Campos.
IV.                        busca, pelo meio da ironia, caracterizar Luís de Campos.
V.    faz uma crítica a sociedade da época, sendo esta, formada por homens reservados, como é o caso de Campos.

Qual(is) está(ão) correta(s):

a)   I e IV          b) II, III e V          c) III e IV             d) IV           e) I, II, IV e V


Leia o texto que segue refere-se as questões de 9 a 14.

         Aos sete anos entrou para a escola. Que horror !

O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem ; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior. Amâncio, já na Corte, só de pensar no bruto, ainda sentia os calafrios dos outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia-os no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável. Todos os pequenos da aula tinham birra do Pires.

Nele enxergava o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre ; mas, visto que qualquer manifestação de antipatia redundava fatalmente em castigo, as pobres crianças fingiam-se satisfeitas ;riam muito quando o beberrão dizia alguma chalaça e afinal, coitadas ! iam-se habitualmente ao servilismo e à mentira.

Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único professor capaz de “endireitar os filhos”. Elogiavam-lhe a rispidez, recomendavam-lhe sempre que “não passasse a mão” pela cabeça dos rapazes e que, quando fosse preciso, “dobrasse por conta dele a dose de bolos”.

Ângela, porém, não era dessa opinião :não podia admitir que seu querido filho, aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de graça, um anjinho, que ela afagara com tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer criada com os seus beijos - fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão daquela ordem “Ora ! isso não tinha jeito ! ”

Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo em cima : “Que deixasse lá o pequeno com o mestre!... Mais tarde ele havia de agradecer aquelas palmatoadas!” Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância. Verdade é que também fora sempre tido e havido pelo pior dos meninos da aula, pelo mais atrevido e insubordinado. Adquiriu tal fama com o seguinte fato :

Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se assentava ao lado dele e com quem vivia sempre de turra. Um dia pegaram-se mais seriamente .Amâncio teria então oito anos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrou o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes lugares.

Fez-se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com afetação. Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada. Houve rumor. O Pires levantou-se, tocou uma campainha, que usava para esses casos, e sindicou do fato.

Amâncio foi o único acusado.

- Sr. Vasconcelos !- gritou o mestre - porque espancou o senhor aquele menino ?

Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe .

- É mentira ! protestou o novo acusado.

Amâncio repetiu o insulto que recebera. Toda a escola rebentou em gargalhadas.

- Cale-se, atrevido !berrou o professor encolerizado, a tocar a campainha.- Mariola! Dizer tal coisa em pleno recinto de aula!

E, puxando a pura força o delinqüente para junto de si, ferrou-lhe meias dúzia de palmatoadas. Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.

- Ah ! ele é isso?! Exclamou o professor. - Tens gênio, tratante ?! Ora espera ! isso tira-se !

E voltando-se para o rapazito que levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio. Este declarou fortemente que se não submetia ao castigo. O professor quis submetê-lo à força; Amâncio não abriu as mãos. Os dedos pareciam colados contra a palma.

O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade, muito nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo aquilo. Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo. Um “ Oh “formidável encheu a sala . O Pires, rubro de cólera, ordenou que prendessem o atrevido. A aula ergueu-se em peso, com grande desordem.

Caíram bancos e derramaram-se tinteiros. Todos os meninos abraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Amâncio foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua. Mas, quatro pontapés puseram em fugida os dois primeiros rapazes que lhe lançaram os dedos. Dois outros acudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais três, mais oito, vinte, até que todos os quarenta ou cinqüenta estudantes o levaram à presença do Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se houvessem alcançado uma glória.

Amâncio sofreu novo castigo; serviu de escárnio aos seus condiscípulos e, quando chegou à casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu-lhe ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e ao menino da bofetada

Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens.

 Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa do mais forte!....

(AZEVEDO, Aluísio. Casa de Pensão. P. 8-10)
 

9. (Carlos-2009) No trecho “O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem ; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.”, revela-nos uma característica fundamental dos textos naturalistas:

a)   A introspecção psicológica na descrição da personagem.
b)   A comparação entre personagens com animais, a antropozoomorfização.
c)   A descrição das personagens sem mostrar seus defeitos físicos.
d)   As qualidades dadas às personagens nunca são ruins.
e)   Retoma os ideais românticos quanto à descrição.

10. (Carlos-2009) Ainda sobre o trecho da questão anterior, percebe-se a animalização, no seguinte trecho:

a)    O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto...”;
b)   e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.”
c)    “Tinha as mãos grossas, a voz áspera...”;
d)   “...batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício.”
e)   “... e olhos de touro... Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada.”;

11. (Carlos-2009) Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância”. O trecho que não explica a antipatia de Amâncio contra Pires é:

a)   “Nele enxergavam o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre ;”
b)   “E, puxando a pura força o delinqüente para junto de si, ferrou-lhe meias dúzia de palmatoadas. Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.”
c)   “Amâncio foi o único acusado.”
d)   “E voltando-se para o rapazito que levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio.”
e)   “Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe .”

12. (Carlos-2009)Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens.
- Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa do mais forte!...”

A partir do trecho acima, julgue em verdadeiro (V) ou falso (F) as proposições a seguir:

I.     A reflexão feita, surge após as palmatoadas que Amâncio recebe do professor Pires.
II.   Amâncio decepciona-se com sua mãe, pois ela o castiga após ter desrespeitado o
Professor Pires.
III.  O menino despreza a figura paterna, a partir do momento em que ele “abraçara a causa    do mais forte!...”
IV.                O fato modifica profundamente o seu caráter e visão de mundo, marcando na obra uma das teses naturalistas: o homem é um produto do meio.
V.  Para Amâncio, a figura paterna não perdeu o seu valor; aumentou, quando este apoiou o professor Pires, pois o menino sabia que tudo aquilo era para a formação de seu caráter.

A sequencia correta é:

a)   F / F / V / F / V
b)   V / F / V / F / V
c)   V / F / V / V / F
d)   F / V / F / F / F
e)   F / F / V / V / F


13. (Carlos-2009) A figura de linguagem predominante no trecho destacado: “... recomendavam-lhe sempre que “ ‘não passasse a mão’ pela cabeça dos rapazes...” é:

a)   Metonímia   b) Catacrese    c) Sinestesia      d) Metáfora                e) Paradoxo


14. (Carlos-2009) A figura de linguagem predominante no trecho: “Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único professor capaz de “endireitar os filhos”.

a)   sinédoque b) ironia     c) eufemismo              d) prosopopéia  e) alegoria



15. (Carlos-2009)  O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando a ambiente; a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem”. A característica naturalista predominante nesse trecho é:

a)   Predileção por temas escabrosos;
b)   Denúncia da sociedade burguesa;
c)   Linguagem crua, chocante, sensorial e direta;
d)   Legitimação do discurso literário pelo científico;
e)   Determinismo.

16. (Carlos-2009)  Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade". (Prosa de Ficção – Liv. José Olympio Edit. – Rio de Janeiro – 1957 – 2ª ed. – pág. 152).
A partir da citação acima, pode-se concluir que:
a)  Um dos fatores decisivos na corrupção final de Amâncio é o dinheiro fácil com que ele se engolfa em farras e boêmias e se afasta dos livros;
b)  Amâncio aparece sempre condicionado e pré-determinado para o seu final trágico, por causa do extremo sensualismo É o erótico que Amâncio consegue conquistar até a mulher de seu protetor, o Campos.
c)   O autor aprofunda o seu estudo na psicologia de massa, e apresenta, com bastantes detalhes um quadro interessante e válido dos movimentos de massa.
d)  Amâncio não se preocupa em ganhar dinheiro no Rio de Janeiro, mas apenas em estudar e se tornar um bom profissional.
e)  Tudo parte da filosofia positivista, onde o homem se revela a partir do meio em que vive, do momento em que se encontra e por sua herança genética.
17. (Carlos-2009) Sobre a linguagem de Casa de Pensão:
a) pode-se afirmar que predomina a linguagem regional.
b) não pode-se dizer que a lingua(gem) do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
c) não existe imitação no modo de falar do português europeu.
d) a linguagem regionalista está presente em toda a obra, pois, trata-se da mudança de um personagem da região Nordeste para o Sul do Brasil, o que interfere na sua comunicação.
e) a linguagem do livro é científica, pois a obra é Naturalista, e com pouco teor literário.

18. (Carlos-2009) Não percebe-se a apossínclese em:

a) "Que se não deixasse levar pelos pândegos..." (55)
b) "... o que lhe não desejo" (56)
c)   "Amâncio já se não lembrava" (62)
d)   "... porque ela se não desprendesse logo" (73)
e) “...o vômito de Amâncio secava-se no chão” (38)

19. (Carlos-2009) Em Casa de Pensão, os personagens, na sua totalidade, são retratados sob o ângulo patológico: são casos anormais. A alternativa que não condiz com essa característica é:

a) Amâncio aparece como um super-excitado sexualmente, condicionando proximamente pelo ambiente da casa de pensão e remotamente pelo sangue e pela educação;
b) Mme. Brizard e Coqueiro se apresentam como gananciosos a ponto de fazerem negócio à base da cunhada e irmã;
c) Nini sofre de crises agudas de loucura histérica, estrebuchando e caindo diante de Amâncio. Lúcia e o marido se mostram também tipos esquisitos, ela pelo sexo e ele por estranho alheamento;
d) Amélia também se mete, de cambulhada, nessa enxurrada de sujeiras tentando um bom negócio de sexo e dinheiro... A própria D. Hortênsia, mulher do Campos, manifesta sinais de insatisfação sexual: apesar das negativas iniciais diante das propostas;
e)  Amélia é descrita em determinado momento como encantadora. Vestida de um fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor-de-rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia-se-lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas.

20. (Carlos-2009) Sobre o livro Casa de Pensão, veja as proposições:

I. Amâncio só mantém afeições amorosas com Amélia;
II. Existe uma atração sexual partindo da Sra. Hortênsia para Amâncio;
III. Janete, irmã de um dos seus colegas de faculdade, é o grande amor de Amâncio;
IV. D. Ângela é retratada muitas vezes como uma mulher sensual;
V. Amâncio não desonrou a irmã de Janjão.
VI. Existe uma afeição amorosa entre Lúcia e Amâncio.

Está(ao) correta(s):

a) I, III e VI
b) II, V e VI
c) II e VI
d) V
e) III, IV e V
f)   V e VI

21. (UFCG – adaptada) Dê a soma dos itens corretos:

(01)  O narrador-observador, em 3ª pessoa, intercala fatos já acontecidos com comentários próprios sobre as ações das personagens; em algumas passagens esses ‘comentários’ se manifestam com linguagem bastante irônica.
(02) O protagonista, Amâncio, acadêmico de medicina no Rio de Janeiro, evita com veemência dedicar-se à leitura dos textos científicos, mas lê romances de José de Alencar e deseja produzir poesias byronianas,
(04) Não há preocupação em descrever o cotidiano de agrupamentos humanos, porque a motivação deste enredo se baseia em um fato verídico que abalou o Rio de Janeiro em 1876, conhecido como a “Questão Capistrano”.
(08) Amâncio esbofeteia um colega de classe e o professor em defesa de D. Ângela, sendo por isto severamente castigado. Este fato modifica profundamente o seu caráter e visão de mundo, marcando na obra uma das teses naturalistas: o homem é um produto do meio.
(16)  A carta do velho Vasconcelos, recebida por Amâncio na pensão, desencadeia uma reação extremamente emotiva no rapaz, até então movido por um profundo desprezo pela figura paterna.
(32) O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa.

Soma: _________

22. (Carlos-2009) O trecho:

“E, pela manhã, quando Amâncio , ao seguir para as aulas, lhe foi dar o beijo favorito, ela muito amuada, voltou o rosto, resmungando “que a deixasse”.
O rapaz prometeu que “ia pensar” e à noite daria uma resposta”.

                                               (AZEVEDO, Aluisio. Casa de Pensão)

Os termos destacados, nos informa que o discurso é:

a)   Direto, pela fala da personagem ser pronunciada por ela mesma;
b)   Indireto – livre, por aparecer tanto a fala da personagem e sua reprodução por parte do narrador
c)   Indireto, pelo fato do narrador reproduzir o que a personagem falou.
d)   Indireto, por apresentar um diálogo entre o narrador e a personagem.
e)   Direto, por existir uma reprodução da fala da personagem.


6.1.3 – Os Melhores poemas, de Olavo Bilac.

PARNASIANISMO

1 – CONTEXTUALIZAÇÃO

O Parnasianismo é a manifestação poética do Realismo, embora ideologicamente não tenha todos os pontos de contato com os romancistas realistas e naturalistas. É uma estética preocupada com a “arte pela arte”, com seus poetas à margem das grandes transformações do final do século XIX e início do século XX.
Sua denominação é uma alusão às antologias publicadas na França a partir de 1866 com o título Le Parnase Contemporain. O Parnasianismo ocorreu apenas no Brasil e na França, não tendo sido cultivado em outros países. A origem da palavra Parnasianismo associa-se ao Parnaso
grego, segundo a lenda, um monte da Fócida, na Grécia central, consagrado a Apolo (deus do sol da beleza) e às musas, era freqüentado por poetas em busca de inspiração.
A escolha do nome já comprova o interesse dos parnasianos pela tradição clássica. Acreditavam que, assim, estariam combatendo os exageros de emoção e
fantasia do Romantismo e, ao mesmo tempo, garantindo o equilíbrio desejado, por se apoiarem nos modelos clássicos. A presença dos elementos clássicos na poesia parnasiana não ia além de algumas referências a personagens da mitologia e de um enorme esforço de equilíbrio formal. Por se afirmar que não passava de um verniz que revestiu artificialmente essa arte, como forma de
garantir-lhe prestígio entre a camadas letradas do público consumidor brasileiro. Apesar de contemporâneos, o Parnasianismo difere do Realismo e do Naturalismo.
Enquanto esses movimentos se propunham a analisar e a compreender o homem, o Parnasianismo se distancia da
realidade e se volta para si mesmo. Defendendo o princípio da “arte pela arte”, os parnasianos achavam que o objetivo
maior da arte não é tratar de problemas humanos e sociais, mas alcançar a “perfeição” em sua construção: rimas, métrica, imagens, vocabulário seleto, equilíbrio e contenção emocional. A primeira publicação considerada parnasiana é a obra Fanfarras
(1882), de Teófilo Dias, contudo, o
papel de implantação do ideário Parnasianismo coube à tríade formada por
Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto
de Oliveira.

2. CARACTERÍSTICAS DO PARNASIANISMO

a) Preocupação formal: Revela-se na busca da palavra exata ou preciosismo vocabular. Há preferência por sonetos e versos decassílabos ou alexandrinos (com versos de 12 sílabas poéticas); por rimas ricas ou
raras; e por chaves de ouro – versos que concluem a idéia com um belo efeito. Todo esse rigor formal evidencia o tecnicismo dos poetas parnasianos.

b) Contenção lírica: A arte poética deve estar subordinada à razão e a objetividade; a razão predomina sobre a emoção, pois esta última pode comprometer a eficiência técnica do poeta, logo, nada de temas intimistas, confessionais. Vale ressaltar que alguns
poetas parnasianos deixam-se trair por uma índole romântica.

c) Arte pela arte: O parnasiano não admite o caráter utilitário e de engajamento da arte. O único compromisso assumido é com a beleza que, para eles, está na elaboração formal. Por isso, os poetas se isolam na “torre de marfim”, alienando-se da realidade de seu próprio tempo.

d) Preferência por temas descritivos: A poesia toma
como temas paisagens, vasos, estátuas, templos, cenas históricas. Esse aspecto faz com que haja uma aproximação entre a poesia e as artes plásticas. São comuns comparações entre o fazer poético e o de um escultor, ou pintor, por exemplo. Os temas universais
como o amor, a beleza, as artes, o tempo são
tratados de maneira impessoal.

e) Revalorização da cultura clássica: “Na concepção parnasiana, são freqüentes as metáforas inspiradas em lendas e histórias da Antigüidade Clássica, novamente, a tradição greco-latina torna-se o ideal de beleza, distinguindo-se os parnasianos dos românticos.”

f) Metapoesia (Metalinguagem) Falar da criação poética, da própria poesia artísticas:

g) É importante ressaltar é comum encontrarmos o predomínio da ordem indireta (hipérbato).


APRECIAÇÃO DOS TEXTOS.

I - Profissão de Fé – O Labor Poético.
[...]
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,
A idéia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:

E horas sem conta passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar longe de tudo
O pensamento.
           
Notas de Vocabulário.
ourives: artesão que fabrica jóias com metais e pedra preciosas.
Carrara: região da Itália rica m mármore.
ônix: pedra com variedade de cores, inclusive a cor preta.
cinzel: instrumento de aço, com uma das extremidades
cortantes, usado por escultores.
cingir: rodear, colocar em torno de.
altear: elevar, tornar alto.
engastar: encravar em ouro, prata etc.
rubim: ou rubi, pedra preciosa vermelha.
lavor: trabalho manual de caráter artístico e artesanal.
Becerril: nome de um famoso artesão.
perícia: habilidade.

I - Via Láctea (soneto XIII) –

 Amor e Distanciamento.

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

II - Nel Mezzo Del Camin

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece.
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo.
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo

III – Satânia – Sensualidade.

Nua, de pé, solto os cabelos às costas
Sorri. Na alcova perfumada e quente,
Pela janela como um rio enorme
Profusamente a luz do meio-dia
Entra e se espalha palpitante e viva.
Entra, parte-se em feixes rutilantes,
Aviva as cores das tapeçarias,
Doura os espelhos e os cristais inflama.
Depois, tremendo, como a arfar, desliza
Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve,
Como uma onda vaga preguiçosa e lenta
Vem lhe beijar a pequena ponta
Do pequenino pé macio e branco.
Sobe... cinge-lhe a perna longamente;
Sobe... – e que volta sensual descreve
Para abranger todo o quadril! – prossegue,
Lambe-lhe o ventre. abraça-lhe a cintura
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo
Da axila, acende-lhe o coral da boca,
E antes de se ir perder na escura noite,
Na densa noite dos cabelos negros,
Pára, confusa, a palpitar diante
Da luz mais bela dos seus grandes olhos.
E aos mornos beijos, às carícias ternas
Da luz, cerrando levemente os cílios,
Satânia os lábios úmidos encurva,
E da boca na púrpura sangrenta
Abre um curto sorriso de volúpia...

Notas de Vocabulário

alcova: quarto de dormir;
rutilante: muito brilhante, resplandecente;
arfar: ansiar, ofegar;
túmido: saliente, proeminente; espádua: ombro;
recôncavo: cavidade funda; gruta;
coral: cor vermelho-amarelada, característica das colônias
de coral;
Satânia: feminino de Satã: o demônio, o tentador;
volúpia: grande prazer dos sentidos.

Exercícios

TEXTO 1

Pixinguinha
Tu és divina e graciosa, / Estátua majestosa do amor / por Deus esculturada /e formada com ardor / da alma da mais linda flor, / de mais ativo olor, / que na vida é preferida pelo
beija-flor. / Se Deus me fora tão clemente
aqui neste ambiente de luz, / formado numa tela deslumbrante e bela, / teu coração junto ao meu lanceado / pregado e crucificado sobre a rosa cruz / do arfante peito seu. / Tu és a forma ideal, / estátua magistral, oh! Alma perenal do meu primeiro amor.

TEXTO 2

SINFONIA

Meu coração, na incerta adolescência, / outrora, Delirava e sorria aos raios matutinos / Num prelúdio incolor, como o
allegro da / aurora,Em sistros e clarins, em pífanos e sinos. / Meu coração, depois pela estrada sonora / Colhia a cada passo os amores e os hinos, / E ia de beijo em beijo, em lasciva demora, / Num voluptuoso adágio de harpas e violinos. / Hoje, meu coração, num scherzo de ânsias, / Arde em flautas e oboés, na inquietação da tarde, / E entre esperanças foge e entre saudades erra ... (...)

O texto 1 é a letra de uma canção popular de Pixinguinha, gravada no início do século XX; o texto 2 é um poema parnasiano de Olavo Bilac, do século XIX. Apesar do tempo que os separa, o texto 1 aproxima-se do texto 2 pelo registro do seguinte aspecto:

a) mal-do-século e espiritualismo.
b) nativismo e bucolismo.
c) uso de palavras raras.
d) referências à mitologia.
e) objetividade e racionalismo.

 
“Torce, aprimora, alteia, lima 
A frase; e, enfim, 
No verso de ouro engasta a rima 
Como um rubim.
Quero a estrofe cristalina, 
Dobrada ao jeito 
Do ourives, saia da oficina 
 Sem um defeito”.
                                        (Olavo Bilac, “Profissão de Fé”, Poesias)
2. (FUVEST) Nos versos acima, a atividade poética é comparada ao lavor do ourives, porque, para o autor: 
a) a poesia é preciosa como um rubi; 
b) poeta é um burilador; 
c) na poesia não pode faltar a rima; 
d) o poeta não se assemelha a um artesão; 
e) o poeta emprega a chave de ouro.
3. (FUVEST) Pode-se inferir do texto acima que, para Olavo Bilac, o ideal da forma literária é: 
a) a libertação 
b) a isometria 
c) a estrofação 
d) a rima 
e) a perfeição
4. (FUVEST)  Dentre as seguintes passagens, extraídas de poemas de outros autores, assinale aquela que pode ser considera-da uma reiteração da proposta contida no fragmento de “Profissão de Fé”. 
a) “Este verso, apenas um arabesco / em torno do elemento essencial - inatingível”. 
b) “Assim eu quereria o meu último poema / Que fosse terno dizendo as coisas, mais simples e menos intencionais” 
c) “Musa (...) dá-me o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa,/  rima (...) / a estrofe limpa e viva” 
d) Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução” 
e) “Catar feijão se limita com escrever: / joga-se os grãos na água do alguidar / e as palavras na folha de papel”
5. (FUVEST)  Indique, dentre os versos abaixo, aquele que, sob o ponto de vista da métrica, tem a mesma contagem de sílabas do verso: 
Do ourives, saia da oficina: 
a) “A natureza apática esmaece” 
b) “Minha terra tem palmeiras” 
c) “Dobra o sino... soluça um verso de Direceu...” 
d) “Não morrrerás, Deusa sublime” 
e) “São Paulo! comoção de minha vida...”
6. (UF-ES) O ideal parnasiano do culto da “arte pela arte” significa que o objeto do poeta é criar obras que expressem: 
a) um conteúdo social, de interesse universal. 
b) a noção do progresso de sua época. 
c) uma mensagem educativa, de natureza moral. 
d) uma lição de cunho religioso. 
e) o Belo, criado  pelo perfeito uso dos recursos estilísticos.
7. (CFET-PA) Todas as afirmações abaixo estão corretas, com exceção de: 
a) O Parnasianismo é a manifestação poética do Realismo,  mais voltada  para o concreto.
b) Os parnasianos assumiram o sentimentalismo quanto à observação  da realidade, pregando uma atitude pessoal. 
c) Os parnasianos, negando a emoção, cultuam a Razão e revalorizam a Antigüidade Clássica. 
d) O Parnasianismo é uma estética preocupada com a arte pela arte, a poesia pela poesia.
e) Os parnasianos fixam-se na observação de regras poéticas e têm, por isso, uma linguagem rebuscada e artificial.
8. (UF-PA) À subjetividade romântica os parnasianos contrapuserem a impessoalidade objetiva; Bilac, parnasiano por exce-lência, por vezes foge do rigorismo objetivista de sua escola como, por exemplo, nos versos em que o eu do poeta se manifesta claramente. É o que se vê em: 
a) Fernão Dias Paes Leme agoniza. Um lamento / Chora largo, a rolar na longa voz do vento. 
b) Pára! Uma terra nova ao teu olhar fulgura! / Detém-te! Aqui, de encontro a verdejantes plagas. 
c) E eu, solitário, volto a face, e tremo, / Vendo o teu vulto que desaparece. 
d) Chega de baile. Descansa! / Move a ebúrnea ventarola. 
e) E ei-la, a morte! E ei-lo, o fim! A palidez aumenta; Fernão Dias se esvai, numa síncope lenta.
9.  (UM-SP) Assinale a alternativa que não se aplica à estética parnasiana. 
a) predomínio da forma sobre o conteúdo. 
b) tentativa de superar a sentimento romântico. 
c) constante presença da temática da morte. 
d) correta linguagem, fundamentada nos princípios dos clássicos. 
e) predileção pelos gêneros fixos, valorizando o soneto.


Outros Poemas


A velhice

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores moças, mais amigas
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...



O homem, a fera e o inseto, à sombra dela
Vivem, livres da fome e de fadigas:
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.


Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,


Na glória de alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!


Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!


Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,


Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


Um beijo

Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior...Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.


Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...



Um comentário:

SIMULADO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE ALAGOAS E OLHO D'ÁGUA GRANDE - BASEADO NO INSTITUTO BAHIA

  SIMULADO HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE ALAGOAS   1.             A História de Alagoas é marcada por uma série de experiências de lutas, resi...