O Coração Roubado
Eu
cursava o ultimo ano do primário e como já estava e com o diplominha garantido,
meu pai me deu um presente muito cobiçado: O coração, famoso livro do escritor
italiano Edmondo de Amicis, best-seller mundial
do gênero infanto-juvenil. Na página de abertura lá estava à dedicatória do velho,
com sua inconfundível letra esparramada. Como todos os garotos da época, apaixonei-me
por aquela obra-prima e tanto que a levava ao grupo escolar da Barra Funda para
reler trechos do recreio.
Justamente no último dia de aula, o das
despedidas, depois da festinha de formatura, voltei para a classe a fim de
reunir meus cadernos e objetos escolares, antes do adeus. Mas onde estava O coração? Onde? Desaparecera. Tremendo
choque. Algum colega na certa o furtara. Não teria coragem de aparecer em casa
sem ele. Lá informar a diretoria quando, passando pelas carteiras, vi a lombada
do livro, bem escondido sob uma pasta escolar. Mas... era lá que se sentava o
Plínio, não era? Plínio, o primeiro da classe em aplicação e comportamento, o
exemplo para todos nós.
Inclusive
o mais limpinho, o mais bem penteadinho, o mais tudo. Confesso, hesitei. Desmarcar
um ídolo?Podia ser até que não acreditassem em mim. Muitos invejavam o Plínio.
Peguei o exemplar e o guardei em minha pasta. Caladão. Sem revelar a ninguém o
acontecido. Lembro do abraço que Plínio me deu à saída. Parecia estar segurando
as lagrimas. Balbuciou algumas palavras emocionadas. Mal pude retribuir, meus
braços se recusavam a apertar o cínico.
Chegando em casa minha mãe estranhou que eu
não estivesse muito feliz. Já preocupado com o ginásio? Não, eu amargava minha
primeira decepção. Afinal, Plínio era um colega que devíamos imitar pela vida
afora, como costumava dizer a professora. Seria mais difícil sobreviver sem o
seu exemplo. Por outro lado, considerava se não errara em não delatá-lo. “Vocês
estão todos enganados, e a senhora também, sobre o caráter de Plínio. Ele
roubou meu livro e depois ainda foi me abraçar...”
Curioso,
a decepção prolongou-se ao livro de Amicis, verdadeira vitrina de qualidades
morais dos alunos de uma classe de escola primária. A história de um ano letivo
coroado de belos gestos. Quem sabe o autor não conhecesse a fundo seus próprios
personagens. Um ingênuo como nossa professora. Esqueci-o.
Passado
muitos anos reconheci o retrato de Plínio num jornal. Advogado, fazia rápida
carreira na Justiça. Recebia cumprimentos. Brrr. Magistrado de futuro o tal que
furtara meu presente de fim de ano! Que toldara muito cedo minha crença na
humanidade! Decidi falar a verdade. Caso alguém se referisse a ele, o que
passou a acontecer, eu garantia que se tratava de um ladrão. Se roubava já no
curso primário, imaginem agora... Sempre que o rumo de uma conversa levava às
grandes decepções, aos enganos de falsas amizades, eu contava, a quem quisesse
ouvir, o episódio do embusteiro do Grupo Escolar Conselheiro Antônio Prado, em
breve desembargador ou secretário de Justiça.
-
Não piche assim o homem – advertiu-me minha mulher.
-
Por que não? É um ladrão?
-
Mas quando pegou seu livro era criança.
-
O menino é o pai do homem – rebatia, vigorosamente.
Plínio
fixara-se como um marco para mim. Toda vez que o procedimento de alguém me
surpreendia, a face oculta de uma pessoa era revelada, lembrava-me irremediavelmente
dele. Limpinho. Penteadinho. E com a mão de gato se apoderando de meu livro.
Certa
vez tomaram a sua defesa:
-
Plínio, um ladrão? Calúnia! Retire-se de minha presença.
Quando
o desembargador Plínio já estava aposentado, mudei-me para o meu endereço
atual. Durante a mudança alguns livros despencaram de uma estante improvisada.
Um deles O coração, de Amicis.
Saudades. Havia quantos anos não o abria? Quarenta ou mais? Lembrei da
dedicatória de meu falecido pai. Ele tinha letra boa. Procurei-a na página de
rosto. Não a encontrei. Teria a tinta se apagado? Na página seguinte havia uma
dedicatória. Mas não reconheci a caligrafia paterna.
“Ao
meu querido filho Plínio, como todo amor e carinho do seu pai.”
Fila
nos Bancos
O
cliente engravatado sorriu e entregou à simpática caixa do banco um cartão,
escrito à máquina: “Vá enchendo a maleta. Comporte-se com naturalidade. Estou
segurando uma arma. Obrigado”
Não
freqüento agências bancárias, serviço assumido por minha mulher. Perder nas
filas tempo que emprego escrevendo resultaria
em prejuízo financeiro. No geral a consorte volta exausta e indignada
com alguma coisa. A espera, que ás vezes começa a quilômetros do guichê, sempre
expõe a alguma convivência desagradável. A impaciência, o lento passo a passo
suscitam inimizades. A maioria força o diálogo oferecendo balas, caramelos e
biscoitos. “Experimente, são deliciosos”. Por educação ela aceitou uma dessas
delícias: sofreu na fila mesmo uma cólica violente, não suporta nada que tenha
coco. Uma vovó levava no colo uma criança que amou minha mulher à primeira
vista e quis mudar de peito. “Segure ela um pouquinho, gostou da senhora.”
Embora não houvesse reciprocidade, minha cara-metade foi gentil. Aconteceu
exatamente o que vocês estão adivinhando. Ou sentindo o odor.
Mas
eu contava a história do ladrão de banco.
A
caixa nem olhou para os lados para que o assaltante não pensasse que ela pedia
socorro. Diante dela, o falso cliente mantinha o mesmo sorriso imóvel. A maleta
preta já estava aberta sobre o guichê. Hesitou. Então ele parou de sorrir e
mexeu o braço armado. Ela depositou o primeiro maço de notas de dez na maleta.
Em
época de eleições não é seguro revelar o nome de seu candidato nas filas,
diz-me minha mulher. Já vi gente se sair mal por isso. Brigar é uma forma de
preencher o tempo. Ela se queixa em especial dos portadores de mau hálito,
justamente os chegados às confidências cara a cara. Companheiro de filas para
alguns é como padre em confessionário. Mas há coisas piores. Uma tarde minha
mulher voltou da agência possessa. Um cavalheiro atrás dela, fumando um
charuto, perguntou-lhe: “Não está sentindo um cheiro de queimado?”
Distraidamente ele fizera um furo em seu vestido. Sabem quanto me custou a
distração?
Além
das confissões constrangedoras, também há aquelas correntistas que pedem
conselhos – não sobre aplicações. Depois da narração de uma história trágica,
perguntam ansiosamente como se a uma velha amiga: “ Em meu lugar o que a
senhora faria? Devo fazer isto ou aquilo? Devo permitir que minha filha saia
com ele?”. Outro dia minha mulher chegou em casa trêmula. Uma mãe desesperada,
da qual nem lembrava, acercara-se dela, ameaçadoramente, no banco: “Fiz o que
aconselhou e sabe qual o resultado? Minha filhinha há três meses desapareceu
com o cafajeste...”
Mas
eu contava a história do ladrão de banco.
A
caixa foi colocando os maços de dinheiro dentro da maleta preta. Lentamente, o
que irritava o assaltante. Atrás dele a fila crescia. E a fila também ao lado.
O assalto praticado por um homem só porém prosseguia, a cada segundo mais tenso
em meio ao movimento da agência, protegida por guardas fardados.
-
O mais chato são certos encontros – garantiu minha mulher. – Gente que não
vemos há décadas e das quais nem lembramos mais.
Como
a saudade atua nos músculos! Ela mostrou-me o vestido amassado. Uma vizinha de
infância, pesando uns 80 quilos, quase a matara comprimindo-a entre os braços.
Isso enquanto lambuzava-lhe o rosto com beijos prolongados. Até seus cabelos
ficaram em estado lamentável. Despregou-se um botão, Nada mais inconveniente
que topar com antigos conhecidos em hora errada!
Mas
eu contava a história do ladrão de banco.
Subitamente
um cavalheiro aproximou-se do assaltante com um palmo de sorriso. Colocou-se
entre ele e a moça.
-
Batista, você! Há quanto tempo! Ainda esta semana conversei com seu tio no
supermercado! Me dê um abraço, amigão! Mas, o que é isso? Vai sair por aí com
esse baú cheio de dinheiro? Não tem medo de ladrões, não?
Batista
olhou para o chão, mas não viu o buraco algum para esconder-se.
A
caixa, sorrindo, ao amigo dele:
-
Seu Batista não vai sair com esse dinheiro, não; ele veio depositar.
O
Rei da boca livre
-
Preste atenção naquele homem.
Tinha
pouco mais de cinqüenta anos, altura mediana, modos discretos e roupa
passadinha. Tipo de pessoa que mesmo com um guarda-roupa reduzido não faz feio
em reuniões sociais. Um tio meu usou apenas dois ternos a vida inteira. Morreu
considerado elegantíssimo. O referido comia delicadamente um bolinho. Não mão
direita segurava um copo de uísque.
-
Quem é a figura?
-
O maior freqüentador de coquetéis da cidade – informou o acadêmico Geraldo Pinto
Rodrigues.
-
Nome?
-
Já investiguei. Ninguém sabe.
-
Ora, quem manda os convites deve saber.
-
Nunca foi convidado. Lê a notícia dos coquetéis nos jornais. E numa noite de
autógrafos ou versissage quem vai
barrar a entrada de prováveis compradores?
Estávamos
na livraria Teixeira. O homem de identidade misteriosa armazenara outro uísque
numa estante, entre o Contraponto e Os sertões. Colocando num ponto em que o
garçom teria obrigatoriamente de passar, abastecia-se também de salgadinhos.
Mas não bebia afobadamente. Portava-se como perfeito cavalheiro. Não comprou o
livro do lançamento, porém o vi cumprimentar ao autor à distância, revelando
uma grande, uma infinita admiração.
Semanas
depois, vou a uma exposição de pinturas e quem
estava na galeria, observando as obras de arte? Ele, claro. Mas o interesse
artístico não o impedia de beber uísque e comer deliciosos pasteizinhos.
Perguntou ao funcionário o preço de um quadro. Pela expressão captada, não
achou caro.
Na
mesma semana, tivemos novo encontro no centenário de uma casa comercial. Um
festão. E no mês seguinte outro,, promovido por uma determinada marca de
eletrodomésticos. Não prestigiava apenas as artes, era solidário ao comércio e
à indústria. Bonito isso. Sua primeira preocupação: conhecer o trajeto dos garçons.
Respirava melhor o ar próximo da cozinha. Embora não conversasse com ninguém,
um estranho no ninho, não assumia a mágoa da solidão. Punha-se à vontade, um
passo pra cá, outro pra lá, esperando, sem nenhum ressentimento, por alguém que
não chegaria jamais.
Fiquei
algum tempo sem vê-lo, até que o revi na redação de uma agência de publicidade.
Houvera uma convenção de gerentes de lojas de tecidos e coube-me fazer a
legenda das fotos para a imprensa. O contato da agência pegou uma delas e foi esclarecendo:
-
Este aqui é o presidente da empresa, este é o vice-prefeito, este com o troféu
é o gerente que mais vendeu... a mulher dele, este com o copo na mão é... é...
Olhei.
Ele! O rei da boca-livre! Desta vez, ousando, pegara jantar na mesa principal
com direito a discursos, crachá e tudo mais.
Em
certa ocasião cheguei até a anunciar:
-
Vocês vão ver entrar por aquela porta um penetra que não perde lançamentos.
Não
entrou. Teria se cansado de tais eventos? Salgadinhos estavam lhe fazendo mal?
Acabei atinando com a resposta. Tratava-se de um coquetel a seco, como
geralmente são os de livros de poesia, que já encalham no lançamento. Gato
escaldado, o homem da boca-livre fugia de poetas.
A
bela festinha era desta vez em minha homenagem. Uma entidade cismara de
premiar-me pela publicação de um romance. Recebi um objeto pequeno como um
troféu e um cheque ainda menor. Em compensação, quiseram que eu, diante do
fotógrafo, erguesse vitorioso uma taça de champagne. Pose exibicionista demais,
algo de estátua eqüestre. Preferível sem braço erguido, brindando simplesmente
com alguém. Qualquer um. Vamos lá? Vamos.
Tim-tim.
Choque espumante de duas taças. O primeiro TIM foi meu. O segundo, olhei
atônito, foi dele, sim, dele, o rei da boca-livre! Com um sorriso e uma taça
aproximara-se. Desde a convenção dos gerentes já não se contentava em comer e
beber sem pagar: queria registro do fato.
-
Não comprei seu livro porque, imagine, recebi dois de presente.
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