Textos 2º
ano
Conceição
Machado de
Assis
A família era
pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez
horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa
dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses
que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra
fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía
e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um
eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e
dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a
existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou
achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a
santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos
do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes
lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana;
aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal.
Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem
feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém,
perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
1. Como
é caracterizada a família descrita neste trecho: da alta burguesia, da classe
media, idealizada, pobre, rica, de hábitos sofisticados ou simples?
2. Por
que se pode afirmar que o ambiente domestico desta família se caracteriza pela
dissimulação (disfarce, fingimento, hipocrisia)?
3. “O
próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio.” Que avaliação da personalidade
de Conceiçao corresponde a essa descrição física?
4. O
que sobressai no texto: a descrição física ou a análise psicológica da
personagem?
O primeiro beijo
Machado de Assis
“Tinha dezessete anos; pungia-me um
buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos,
eram a minha feição verdadeiramente máscula.
Como ostentasse certa arrogância, não
se distinguia bem se era uma criança, com fumos de homem, se um homem com ares
de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de
botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, o corcel das antigas
baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas
ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso
deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e,
por compaixão, o transportou para os seus livros.
Sim, eu era esse garção bonito,
airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante
de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas, porém
a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao
menos na intenção na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo
ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a "linda Marcela",
como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de
um hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a
opinião aceita é que nascera de um letrado de Madri, vítima da invasão francesa,
ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos.” Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que
Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do
código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos,
um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas
ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro
e de rapazes.
1. Por que se pode afirmar que a visao que o narrador tem da sua personalidade
aos 17 anos nao é idealizado?
2. Que observaçoes o narrador faz sobre o romantismo?
3. “De
todas, porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este
livro é casto, ao menos na intenção na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se
há de dizer tudo ou nada.” Este período nos faz esperar que tipo de descrição
da personagem de Marcela? Por que?
4. Quais os traços
marcantes da personalidade de Marcela?
Rita Baiana
Aluisio Azevedo
Ela saltou em meio da roda, com os
braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a
esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num
requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já
recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num
prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo.
Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os
dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os
quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e
abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a
carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando.
O chorado
arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar.
Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo
daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser
sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada,
harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.
E
Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.
Naquela
mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu
chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das
sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o
atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não
torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti
mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite
de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca
doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe
os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra,
picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele
amor setentrional, [...]
1. Que
diferenças podemos estabelecer entre a caracterização de Rita Baiana e uma
personagem feminina dos romances românticos?
2. Como
se caracteriza o meio social do cortiço? Em que ele difere do ambiente
romântico?
3. Que
sentimentos são despertados em Jerônimo pela dança de Rita Baiana?
4. O
narrador faz questão de retratar atitudes e personagens primitivos, acentuando
a degradação dos tipos. Para isso, no romance, aproxima-os insistentemente de
insetos e animais. Retire do texto exemplos que corroborem essa afirmação.
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